A manifestação do Espírito Santo, em dia de Pentecostes (1), marca a concretização da promessa de Jesus, em que o Espírito de Deus é derramado sobre a comunidade dos irmãos, reunidos no Cenáculo. Com efeito, «no dia do Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, a Igreja foi manifestada ao mundo. O dom do Espírito inaugura um tempo novo na «dispensação do mistério»: o tempo da Igreja, durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica a sua obra de salvação pela liturgia da sua Igreja, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26). Durante este tempo da Igreja, Cristo vive e age, agora na sua Igreja e com ela, de um modo novo, próprio deste tempo novo. Age pelos sacramentos e é a isso que a Tradição comum do Oriente e do Ocidente chama «economia sacramental». Esta consiste na comunicação (ou «dispensação») dos frutos do mistério pascal de Cristo na celebração da liturgia «sacramental» da Igreja» (2).
Algo novo acontece com a manifestação do Espírito Santo no dia de Pentecostes.
A narrativa de São Lucas nos Atos dos Apóstolos tem caraterísticas muito
específicas, que devem ser analisadas, tanto à luz das componentes adstritas à
festa judaica, como naquilo que a passagem de At 2, 1-13 nos apresenta muito
para além das palavras escritas ou mesmo dos conceitos subjacentes...
«1
Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo
lugar. 2 De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao
de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam.
3
Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e
poisou uma sobre cada um deles. 4 Todos ficaram cheios do Espírito Santo e
começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.
5
Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que
há debaixo do céu. 6 Ao ouvir aquele ruído, a multidão
reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria
língua.
7
Atónitos e maravilhados, diziam: «Mas esses que estão a falar não são todos
galileus? 8 Que se passa, então, para que cada um de
nós os oiça falar na nossa língua materna? 9 Partos, medos,
elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da
Ásia, 10 da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da
Líbia cirenaica, colonos de Roma, 11 judeus e prosélitos, cretenses e árabes
ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!»
12
Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros:
«Que significa isto?» 13 Outros, por sua vez, diziam, troçando:
«Estão cheios de vinho doce» (At 2, 1-13).
Podemos encontrar neste texto elementos prévios de enquadramento do texto na
vivência judaica, pois, o povo estava na rua em festa: seja ela de teor mais
agrícola – pelos primeiros frutos da terra ou pelos dons recebidos ao longo a
ano – seja pela leitura do dom da Lei no Sinai, isso motivava a que Jerusalém
fosse ‘invadida’ de povos vindos do mundo civilizado e ligado à religião judaica
do tempo. A referência ao ‘vinho doce’ com que interpretaram as manifestações
carismáticas pode fazer confundir essa leitura dos primeiros frutos oferecidos
a Deus e partilhados com os outros. São Paulo advertirá, em 1 Cor 12, 2, que
não se deve confundir a ação do Espírito Santo com outros efeitos, como os do
vinho, referindo-se aos cultos dionísiacos em Corinto e noutras cidades gregas
daquele tempo.
Vejamos aspetos mais salientes nesta teofania do Espírito Santo, em dia de Pentecostes:
a)‘Som comparável ao
de forte rajada de vento’ (v. 2). Tanto em hebraico como em grego é usada a
mesma palavra para exprimir espírito e vento: ‘ruah’ e ‘pneuma’, respetivamente
(3). A figura do vento simboliza o
Espírito Santo, e o fato de o som vir do céu significa que Ele foi derramado da
parte de Deus, conforme Jesus havia prometido (cf. Jo 14, 16. 26; 15, 26; 16,
7).9-11. Ele realmente veio do céu, da morada de Deus.
b) ‘Umas línguas à maneira de fogo’
(v. 3). Eles viram línguas à maneira de fogo e que poisaram sobre cada um
deles. Na Bíblia o fogo, em várias ocasiões, aparece usado como símbolo da
presença divina, realçando a santidade e o juízo de Deus. «O fogo simboliza a
energia transformadora dos atos do Espírito Santo. O profeta Elias, que
«apareceu como um fogo e cuja palavra queimava como um facho ardente» (Sir 48,
1)... João Batista (...) anuncia Cristo como Aquele que «há de batizar no
Espírito Santo e no fogo» (Lc 3, 16), aquele Espírito do qual Jesus dirá: «Eu
vim lançar fogo sobre a terra e só quero que ele se tenha ateado!» (Lc 12, 49).
A tradição espiritual reterá este simbolismo do fogo como um dos mais
expressivos da ação do Espírito Santo» (4).
c) ‘Começaram a falar outras línguas’ (v.
4), conforme o Espírito lhes
inspirava que se exprimissem. Talvez devamos considerar - mesmo pela
experiência pessoal dos grupos do Renovamento Carismático, católico ou não -
que mais do que línguas (idiomas), este é um assunto do âmbito da linguagem. «O
dom de falar outras línguas significa a capacidade que os Apóstolos tinham de
se fazerem entender perante outros povos. Assim, o Espírito restabelece, no
Pentecostes, a unidade de linguagem que se tinha desfeito com Babel (Gn
11,1-9), prefigurando a universalidade da mensagem cristã» (5).
d) Diversos povos...fascinados pelas
maravilhas de Deus (vv. 5-11). Na confluência e reunião que era Jerusalém
da multiplicidade de povos e de culturas, vemos que as diversas nações
enumeradas desde Este a Oeste, com a Judeia no centro, simbolizam a totalidade
do mundo habitado...desde os iniciados até àqueles que estavam a dar os
primeiros passos na religião judaica...todos tinham espaço, lugar e expressão
na universalidade do cristianismo.
Para percorrer a ação viva e vivificante do Espírito Santo
recomendamos a leitura, meditação e oração do livro dos Atos dos Apóstolos,
também designado ‘evangelho do Espírito’, saboreando a dinâmica que esse mesmo
Espírito fez e faz na Igreja.
1. No Antigo Testamento, a designada festa do
Pentecostes é referida como: Festa das Colheitas (Êx 23.16), Festa das Semanas
(Dt 34.22) e Dia das Primícias dos Frutos (Nm 28.26)...três designações
progressivas e complementares das vivências do povo de Deus... A designação
‘pentecostes’ tem a ver com a contagem de ‘cinquenta dias depois’ da celebração
da Páscoa. Referir esta festa como das colheitas ou das primícias tinha a ver
com esse momento em que todo o povo agradecia a Deus as colheitas da terra e
Lhe oferecia solenemente os primeiros frutos. Com o passar do tempo a
esta festa de matiz agrícola foi sendo dada a tonalidade de agradecimento a
Deus pela entrega da Lei no Sinai, que, nalgumas interpretações, teria
acontecido, cinquenta dias depois da libertação do Egito (cf. Ex 19,1).
Enquanto a celebração da Páscoa era mais de teor familiar, o Pentecostes
abordaria a vertente comunitária e com a participação de todo o povo...em
festa.
2. Cf. Catecismo da Igreja Católica,
1076.
3. «O termo «Espírito» traduz o termo hebraico «Ruah» que, na sua primeira
acepção, significa sopro, ar, vento. Jesus utiliza precisamente a imagem
sensível do vento para sugerir a Nicodemos a novidade transcendente d’Aquele
que é pessoalmente o Sopro de Deus, o Espírito divino» – Catecismo da Igreja Católica, 691.
4. Cf. Catecismo da Igreja Católica,
696. «Depois do vento forte, as línguas de fogo (Is 5,24; 6,6-7) evocam também
a teofania do Sinai (Ex 19,16-18) e o poder de Deus, que lhes comunica o dom de
falar uma linguagem nova que todos serão capazes de entender» - Nota a At 2,3,
na Bíblia Sagrada dos capuchinhos
5. Cf. Nota a At 2, 4 na Bíblia Sagrada
dos capuchinhos. Glossolalia - ‘glossa’, língua, ‘lalen’, falar - é um fenómeno
recuperado nos movimentos carismásticos/pentecostais e que fundamenta a sua
expressão nesta faceta da narrativa do Pentecostes em At 2,4. Na maior parte
dos casos faz-se equivaler a glossolalia com o dom das línguas (1 Cor 12, 10.
Se bem que seja difícil definir, em conceitos humanos e segundo termos
percetíveis em linguagem material, há quem use imagens algo simplistas para se
referir ao dom das línguas e, sobretudo, ao canto em línguas, habitual na
expressão carismática/pentecostal: seria como uma seara onde o vento faz
ondular o trigo numa harmonia coordenada por alguém desconhecido; outros usam a
figuração do carrilhão de sinos que parece tocar em confusão, mas cujo terminar
há de ser harmonioso e sublime...outras imagens poderão ser apontadas, sempre
numa conjugação da diversidade na unidade. Sobre o tema, dada a autoridade de
saber e de espiritualidade, ver: Raniero Cantalamessa, Vem, Espírito Criador, Braga, AO, 2009, pp. 300-308
António Sílvio Couto
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