Numa
discussão de rua podemos registar duas filhas e duas mães, dirimindo contendas
do foro familiar, social e até pessoal. Dizia uma mãe à filha: chama-lhe (um
impropério não reproduzível aqui), antes que te chame…algo que possa ofender a
tua honra ou honorabilidade. Embora umas e outras estivessem no mesmo patamar
moral/ético, quanto ao passado e mesmo em relação ao presente, quem ofendesse
primeiro tomava a dianteira de acusar com quem se dirimia…
Entre
muitos ‘casos’ que podiam aqui ser elencados, colocamos os acontecimentos mais
recentes por ocasião da morte de uma criança, em Setúbal, como um desses nós de
marginalidade e um possível elo de uma cadeia menos visível aos olhos mais
incautos ou distraídos.
1. Muito para além do caso da
criança que morreu – talvez se deva considerar que foi morta – pelas mais
diversas razões, não deixou de ser inquietante ver, observar e analisar as
reações: muitos/as do que reagiram de forma desabrida, onde andavam quando a
criança estava viva e sofria de menos bons tratos? Não terão negligenciado as
condições para agora virem contestar as consequências? Todo o aparato –
gritaria, ofensas e barulho – será o arrebato da consciência acordada pelos
efeitos de tantos silêncios cúmplices e quase-acobardados? Até onde irá esta
onda de reação e não de prevenção, em tantos casos idênticos e não-declarados?
2. A comunicação social
encarregou-se de desenterrar outros casos mais ou menos recentes e onde podemos
constatar que ainda não aprendemos nada com os sucessivos momentos trágicos que
têm envolvido crianças. Parece haver um país subterrâneo que emerge de vez-em-quando
para nos recordar que há crianças em perigo – muitas mais do que seria
desejável – de segurança, sem laços de afeto e, sobretudo, que se continua a
reproduzir uma pobreza que é mais moral do que económica… mais humana do que de
condições da habitabilidade… mais entendível na perspetiva da relação com o
divino do que na harmonização social ou cultural! Com efeito, quando Deus é
colocado fora da educação de tantas pessoas, que se poderá esperar, agora e num
futuro próximo?
3. A fazer fé naquilo que foi
noticiado, as causas que levaram à morte daquela criança, em Setúbal – entre um
ato de bruxaria (com um valor referido de quatrocentos euros) e a possível
vingação, passando pela negligência familiar e dos serviços estatais – estamos
perante um quadro humano, cultural e ‘religioso’ de alguma complexidade, pois
corremos o risco de misturar vários vetores, onde a ignorância pontifica e
deixa pouco (ou nenhum) espaço para reformular as causas, remediar as
consequências e modificar a curto-prazo o que podia ser diferente e preventivo
para o futuro.
4. Nesta como em tantas outras
situações podemos ver a fragilidade dos laços familiares, onde as crianças e os
mais velhos são os elos mais fracos da cadeia de relações humanas, tornando
estes setores fulcrais da sociedade os elementos quase-descartáveis,
silenciados e varridos da preocupação dos ainda ativos na condição de trabalho.
Efetivamente os conceitos de produtividade entram na mentalidade dos nossos
dias, excluindo os mais novos que estão fora dos mecanismos de rendimento e os
mais velhos chutados para fora desse mesmo processo…uns e outros estão nas
franjas daquilo que poderíamos considerar uma cultura materialista prática e
acintosamente criadora de marginalidades…
5. Interpretando o título deste
texto – chama-lhe, antes que te chame – deixo um breve elenco de algumas das
caraterísticas da nossa sociedade: somos egoístas no pensar e no agir; vivemos
como interesseiros assumidos ou presumidos; favorecemos mais a exclusão do que
a inclusão; guetizámos muitas das franjas sociais; produzimos e reproduzimos
marginais e marginalizados; lançamos sementes de promiscuidade que darão frutos
de maior amoralidade; vendemos processos sociais centrados nas coisas materiais
mais ou menos declaradas… Desenterremos Deus e Ele nos fará perceber o ridículo
em que temos andado!
António Sílvio Couto
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