É recorrente ouvirmos – nas frases ditas em público ou em conversas mais pessoais – dizer: ‘eu cá tenho a minha espiritualidade e não pratico nem preciso de nenhuma religião’... Será isto possível e não passa de mais uma frase de moda e ao sabor da ocasião? Haverá nessa forma de estar algo que tenha a referir-se sobre o modo de ser? Com tanta pretensa autonomia não haverá algo de excesso de individualismo? Até que ponto este posicionamento - com algo mais intimista e menos institucional - é revelador de uma certa cultura? Não vivermos já este ambiente sócio-cultural?
1. Espiritualidade ‘à la carte’. Quem diga a frase citada manifesta por certo uma vivência que não se reduzirá à normalidade, isto é, muitas pessoas (a maioria senão uma quase totalidade) nem pensarão na necessidade de terem uma ‘espiritualidade’ que as possa guiar. O dito materialismo prático – como referia o Papa Bento XVI – não lhes deixa espaço nem tempo para se ocupar com ninharias que não sejam de índole materialista. Aspirar a reportar-se a uma espiritualidade soará a fora do normal, na teoria como na prática.
Há, no entanto, como que subjacente a quem refira aquela frase uma espécie de busca nas diferentes formas de se conduzir na vida, isso a que poderemos chamar de ‘espiritualidade’, isto é, algo que, de forma mais do foro do espírito guia e marca a diferença, senão mesmo serve de mote de conduta, nas pequenas como nas grandes coisas ou acontecimentos pessoais, de grupo ou sociais. Quem não se lembra da espiritualidade franciscana, sob a conduta da pobreza? Quem não recorda a espiritualidade de não-agressão do budismo? Quem não deteta diferença entre o modo de viver de um muçulmano ou de um judeu; de um vicentino ou de carmelita; de um jesuíta ou de um hindu? Mas serão estas ‘espiritualidades’ todas iguais, com o mesmo valor e sob o mesmo significado? Não correremos o risco de confundir as práticas com as razões teóricas? Será que uma pessoa vive sempre na mesma intensidade isso a que pretende designar de ‘espiritualidade’?
2. Sincretismo, holística ou definição? De facto, quem se reclama de uma certa espiritualidade, normalmente, sente-se mais humanista que outros, sem qualquer noção ou vivência espiritual. Só que, hoje, vemos surgirem propostas e condutas que vão recolhendo das várias espiritualidades aquilo que mais lhe convém, seja pelo interesse, seja por oportunismo mais ou menos acomodado... quase numa espécie de ‘nova religião’ sem ritos – cada um faz os seus –, sem códigos – cada qual engendra o que mais lhe convém – ou ainda sem ética – cada um gera e gere a sua...
Ao escutarmos a frase – ‘eu cá tenho a minha espiritualidade’ – podemos estar
perante uma pessoa que tenta recolher das diversas expressões de
espiritualidade aquilo que poderia ser considerado à semelhança do menor
denominador comum e daí fazer traçar a bissetriz de todas ou quase todas.
Quem souber poderá rever na ‘new âge’ (nova era) essa espécie de sincretismo,
tentaculamente recolhendo o que mais agrada nas expressões religiosas mais
diversas. Os temas podem ser diversificados, tanto amplos como redutivos: a
ecologia (natureza, animalidade ou um tal humanismo sem ética); lutas em favor
da idêntica valorização de todas as religiões, desde que possam amesquinhar o
cristianismo; defesa das liberdades individuais em detrimento das vivências
coletivas; desvalorização de certos temas em relação com a vida (aborto,
eutanásia ou reprodução ‘artificial’) e a moralidade (é preferido o termo
‘ética’) à luz dos valores cristãos...
3. Espiritualidade
(mesmo) sem religião? Uma das consequências da pandemia que
estamos a viver foi esta mesma: as pessoas foram-se fechando cada vez mais,
deixando de participar nas atividades comunitárias – no caso católico, na
eucaristia dominical – e reduzindo-se a uma espécie de autodefesa, quanto aos
outros e mesmo na relação com o divino, se isso implicasse socialização. Deste
modo fomos captando (ou capturando) um cristianismo quase a renegar as suas
raízes mais profundas e significativas: a assembleia de fé celebrativa e
comprometida. Isto como que favoreceu, por outro lado, um certo devocionismo à
mistura com sinais preocupantes de uma espécie de religiosidade enjaulada pelo
medo, o preconceito e, mais recentemente, por alguma abjuração da Igreja como
instituição humano-divina, pecadora-santificada e mistério de presença de Deus
em fragilidade...
Os
riscos estão aí, assim saibamos reconhecê-los e corrigi-los em conversão
permanente.
António Silvio
Couto
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