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sexta-feira, 15 de março de 2019

Não sou hipócrita!



Com alguma regularidade vemos surgirem nas declarações públicas e publicadas afirmações de pessoas sobre a sua auto-idoneidade, deixando transparecer uma espécie de juízo moral sobre si mesmos e, por vezes de forma indireta, sobre os outros.

Quem não ouviu já pessoas a defenderem que são muito frontais nas suas posições, mas, de facto, quando consta de falar nas costas tornam-se bons exemplos e cuidados promotores! Quem não ouviu pessoas a clamarem pela (sua) conjugação da verdade, mas que facilmente são apanhadas nas teias da mentira, senão a ostensiva, ao menos na tácita e mais ou menos subtil! Quem não terá já visto e escutado pessoas a apresentarem-se como pretensamente iguais para todos e com todos, mas que sem rede são apanhadas a ‘venderem-se’ por favores dados e recebidos!

Talvez psicologicamente possamos enquadrar tais situações e episódios na área da incongruência, onde aquilo que se diz servirá como de cortina de fumo para esconder o que não se é, de verdade. Pior ainda quando alguém reafirma isso com que se apresenta e o faz de forma repetida ou ainda como recurso de autoafirmação.  

= Aquela expressão supra citada – ‘não sou hipócrita’ – dá-nos como que um paradigma para tentarmos entender tanto daquilo vivemos como do que daquilo com que somos confrontados na vida quotidiana. Com efeito, o conceito de ‘hipocrisia’ envolve algo de desconjunção entre o que se é e aquilo que se quer dar entender pela imagem apresentada. Segundo um autor francês, do século XVII, ‘a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude’, significando que o hipócrita finge que é aquilo que não é, camuflando comportamentos incorretos sob a capa de algo virtuoso, mas que, de verdade, não o é.

Na nossa cultura do narcisismo em que nos – uma boa parte – vamos desenvolvendo poderemos encontrar no espelho algo que poderia bem tipificar muitos dos nossos laivos de hipocrisia com que vamos entretendo e iludindo os outros. Com efeito, o espelho – recorde-se a influência no narciso mítico – podemos enganar muito mais do que pensamos na medida em que cada um vê, aceita ou exalta o que mais o favorece, mesmo que possa ser real mentira. 

= A expressão citada – ‘não sou hipócrita’ – é tirada das repetidas declarações dum treinador de futebol e enquadram-se na vontade que ele manifesta em pretender ser ele mesmo, sobretudo nas horas da derrota. Aí sobe-lhe a azia ao nariz e vocifera contra tudo e contra todos, deixando cair a máscara da sua não-hipocrisia. Também originalmente ‘hipocrisia’ tinha a ver com a máscara colocada para interpretar, por parte dos atores, os diversos papeis a que eram solicitados. Ninguém duvida que o senhor fique aborrecido com as derrotas, mas não tem de desmascarar-se diante de todos, mesmo daqueles que nada têm a ver com a sua forma rude de reagir às contrariedades…

Sabendo que muito daquilo que acontece no futebol é mais emocional do que racional, torna-se fundamental não misturar o agir com o ser, isto é, o que se faz revela o que somos, mas nós somos muito mais do aquele modo como agimos e reagimos. Embora no palco do jogo muitos atuem com lealdade, não podemos entregar a condução deste mundo aos que só têm educação (mínima) quando ganham… e são vitoriosos.  

= Porque corremos o risco de viver nalguma das facetas de hipocrisia, será muito útil aproveitar este tempo da quaresma para deixarmos denunciar em nós mesmos tantos desses tiques de hipocrisia, aceitando-me como quem falha e sentindo-me necessitado de arrependimento, de conversão e de perdão.

Eis palavras da Sagrada Escritura: «Ai de vós mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vós sois como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície. Assim sois vós: por fora pareceis justos ao povo, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e maldade» (Mt 23,27-28).
Que há ou pode haver em mim de hipocrisia não aceite nem assumida? A imagem que tento fazer passar é a verdade daquilo que sou e vivo? Até onde irá a minha hipocrisia, fugindo de viver na Verdade?     

 

António Sílvio Couto


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