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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Olhar… em dinâmica de Quaresma


Uma das facetas mais originais da nossa personalidade humana – física, psicológica e mesmo espiritual – é o nosso olhar, revelado e compreendido nos nossos olhos, pois através deles, como diz sabiamente o nosso povo: ‘os olhos são as janelas da alma’ e ‘ o mal e o bem ao rosto/olhar vem’!

O olho – também o de Deus – reflete, segundo a Bíblia, a vida da alma, sendo-lhe atribuídos determinados afetos, tais como: desejo, esperança, humildade, compaixão… soberba, dureza, lascívia, inveja!

Se atendermos mais em exclusivo ao Novo Testamento podemos considerar que ‘abrir os olhos a alguém’ é curá-lo da cegueira; enquanto em sentido espiritual poderá significar libertá-lo da prisão ou da escuridão.

Em sentido figurado ‘olho’ pode significar espírito, o conhecimento, a intenção, o julgamento, a mentalidade… Por seu turno, ser bom ou ruim aos olhos de alguém – inclusive de Deus – poderá ser-lhe agradável ou desagradável. Por outro lado, a expressão ‘achar graça aos olhos de alguém’ (mesmo de Deus) como que implica uma oração que é atendida.

Com referência a uma vida agradável a Deus, Jesus designa o olho como ‘a lâmpada do corpo’ (cfr. Mt 6,22s), podendo o órgão da vista tornar-se também a figura de atitude espiritual (cfr. Mt 5,29). 

São João, sobretudo no Evangelho, recorre várias vezes (cfr. Jo 6,40; 14,9.19) à expressão ‘ver’ a Deus, ‘ver’ a Cristo no sentido da fé ou de um conhecimento sobrenatural. Cristo, porém, vê a Deus de um modo que lhe é exclusivamente próprio, como Filho e revelador (cfr. Jo 3,11.32; 6,48; 8,38).

Ao nível da arte, a representação, na Idade Média, da Igreja (Novo Testamento) e da Sinagoga (Antigo Testamento), mostra a primeira com olho claro e iluminado e a segunda é apresentada de olhos fechados e vendados. Os humanistas usavam um só olho como sinal-símbolo para Deus, para a propriedade da vigilância e para o pronunciamento do direito. Só após a Reforma é que aparece o triângulo com o olho brilhante como símbolo da Santíssima Trindade, com a sua omnipotência e omnisciência. Esta representação – o olho de Deus – aparece-nos, a partir do século XVIII no ponto superior dos altares-mores e dos púlpitos…

De referir ainda que aos batizados foi dada, nos primeiros séculos do cristianismo, a designação de ’iluminados’, como aqueles que, tendo recebido o batismo como iluminação divina, eram, por isso, enviados a serem a luz de Deus no mundo.  

 = O olhar em contexto da Via-sacra

Tentando ler os diversos intervenientes na Via-sacra de Jesus (*), parece-nos que diante d’Ele os vários olhares são diferentes e certamente o olhar de Jesus será diverso para com cada um dos participantes no drama da Paixão do Senhor: na agonia – olhar apreensivo; na traição de Judas – olhar desconfiado; perante o Sinédrio – olhar julgador; nas negações de Pedro – olhar arrependido; no julgamento de Pilatos – olhar acusador; na flagelação e coroação de espinhos – olhar de raiva; no carregamento da cruz – olhar magoado; na ajuda de Cireneu – olhar de compaixão; no encontro com as mulheres – olhar de misericórdia; na crucifixão – olhar semicerrado; no diálogo com o ladrão – olhar de perdão; no diálogo com a Mãe e o discípulo – olhar materno/filial; na morte – olhar em meditação; no sepultamento – olhar de fé.

Nestes vários momentos reveladores de Jesus aos outros e da revelação dos vários intérpretes a Jesus, podemos encontrar algo mais do que palavras, mas uma mensagem intensa de Deus para connosco e de nós para com Ele: o cruzamento de olhares fala-nos, penetra-nos, manifesta-nos… o mistério de Deus para connosco e nosso para com Deus.
 

Na medida em que a nossa vivência da Quaresma pode e deve estar sob o olhar de Jesus, assim podemos descobrir cada uma das vertentes do nosso olhar e do olhar de Jesus, hoje, para connosco. Será na troca de olhares que descobriremos o amor de Deus para connosco e a nossa ternura para com os outros… a começar pelos que nos são mais próximos.

 
(*) Ver Na via-sacra olhamos… na Via lucis somos olhados, Paulinas, 2014.

 

António Sílvio Couto (asilviocouto@gmail.com)

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