Uma das facetas mais originais da nossa personalidade humana – física,
psicológica e mesmo espiritual – é o nosso olhar, revelado e compreendido nos
nossos olhos, pois através deles, como diz sabiamente o nosso povo: ‘os olhos
são as janelas da alma’ e ‘ o mal e o bem ao rosto/olhar vem’!
O olho – também o de Deus – reflete, segundo a Bíblia, a vida da alma,
sendo-lhe atribuídos determinados afetos, tais como: desejo, esperança,
humildade, compaixão… soberba, dureza, lascívia, inveja!
Se atendermos mais em exclusivo ao Novo Testamento podemos considerar que
‘abrir os olhos a alguém’ é curá-lo da cegueira; enquanto em sentido espiritual
poderá significar libertá-lo da prisão ou da escuridão.
Em sentido figurado ‘olho’ pode significar espírito, o conhecimento, a
intenção, o julgamento, a mentalidade… Por seu turno, ser bom ou ruim aos olhos
de alguém – inclusive de Deus – poderá ser-lhe agradável ou desagradável. Por
outro lado, a expressão ‘achar graça aos olhos de alguém’ (mesmo de Deus) como
que implica uma oração que é atendida.
Com referência a uma vida agradável a Deus, Jesus designa o olho como ‘a
lâmpada do corpo’ (cfr. Mt 6,22s), podendo o órgão da vista tornar-se também a
figura de atitude espiritual (cfr. Mt 5,29).
São João, sobretudo no Evangelho, recorre várias vezes (cfr. Jo 6,40;
14,9.19) à expressão ‘ver’ a Deus, ‘ver’ a Cristo no sentido da fé ou de um
conhecimento sobrenatural. Cristo, porém, vê a Deus de um modo que lhe é
exclusivamente próprio, como Filho e revelador (cfr. Jo 3,11.32; 6,48; 8,38).
Ao nível da arte, a representação, na Idade Média, da Igreja (Novo
Testamento) e da Sinagoga (Antigo Testamento), mostra a primeira com olho claro
e iluminado e a segunda é apresentada de olhos fechados e vendados. Os
humanistas usavam um só olho como sinal-símbolo para Deus, para a propriedade
da vigilância e para o pronunciamento do direito. Só após a Reforma é que
aparece o triângulo com o olho brilhante como símbolo da Santíssima Trindade,
com a sua omnipotência e omnisciência. Esta representação – o olho de Deus –
aparece-nos, a partir do século XVIII no ponto superior dos altares-mores e dos
púlpitos…
De referir ainda que aos batizados foi dada, nos primeiros séculos do
cristianismo, a designação de ’iluminados’, como aqueles que, tendo recebido o
batismo como iluminação divina, eram, por isso, enviados a serem a luz de Deus
no mundo.
Tentando ler os diversos intervenientes na Via-sacra de Jesus (*),
parece-nos que diante d’Ele os vários olhares são diferentes e certamente o
olhar de Jesus será diverso para com cada um dos participantes no drama da
Paixão do Senhor: na agonia – olhar apreensivo; na traição de Judas – olhar
desconfiado; perante o Sinédrio – olhar julgador; nas negações de Pedro – olhar
arrependido; no julgamento de Pilatos – olhar acusador; na flagelação e
coroação de espinhos – olhar de raiva; no carregamento da cruz – olhar magoado;
na ajuda de Cireneu – olhar de compaixão; no encontro com as mulheres – olhar
de misericórdia; na crucifixão – olhar semicerrado; no diálogo com o ladrão –
olhar de perdão; no diálogo com a Mãe e o discípulo – olhar materno/filial; na
morte – olhar em meditação; no sepultamento – olhar de fé.
Nestes vários momentos reveladores de Jesus aos outros e da revelação dos
vários intérpretes a Jesus, podemos encontrar algo mais do que palavras, mas
uma mensagem intensa de Deus para connosco e de nós para com Ele: o cruzamento
de olhares fala-nos, penetra-nos, manifesta-nos… o mistério de Deus para
connosco e nosso para com Deus.
Na medida em que a nossa vivência da Quaresma pode e deve estar sob o
olhar de Jesus, assim podemos descobrir cada uma das vertentes do nosso olhar e
do olhar de Jesus, hoje, para connosco. Será na troca de olhares que
descobriremos o amor de Deus para connosco e a nossa ternura para com os
outros… a começar pelos que nos são mais próximos.
(*) Ver Na via-sacra olhamos… na
Via lucis somos olhados, Paulinas, 2014.
António Sílvio Couto (asilviocouto@gmail.com)
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