Por
estes dias foi notícia: um determinado inquirido, em processo de
investigação, quando realizavam buscas a sua casa, terá tirado das
mãos do inspector um papel que terá comido... inviabilizando as
recolha de provas.
Não
nos importa o caso judicial nem tão pouco as pessoas envolvidas e
muito menos o que envolveria o (tal) papel comido, mas tão somente,
pretendemos aproveitar aquele episódio – o comer da prova – para
reflectirmos sobre outros aspectos da nossa conduta diária, pessoal,
social, política, etc... onde o que comemos – sobretudo na índole
intelectual/cultural – diz do que somos e manifesta o que podemos
ser, de verdade.
=
Do comer o livro...
Quem
conhece minimamente algumas referências bíblicas sabe que, tanto no
Antigo Testamento como no Novo Testamento, nos aparecem textos em que
o profeta, no caso de Ezequiel e quem recebe a revelação no
Apocalipse, João, são desafiados a ‘comer o livro’, numa
expressão de assimilar a mensagem que deve ser proferida. Diga-se
que, na linguagem bíblica, este ‘comer o livro’ ou algo
parecido, significava ser investido numa missão, a de profeta ou de
mensageiro de Deus. Por isso, o enviado/profeta tem de adequar o que
diz em palavras – agora diz-se ‘narrativa’, comunicação ou
mesmo profecia – humanas àquilo que o emissário divino lhe
concede ou investe que faça.
Ora,
numa época de inflação da palavra ou até de bastante, torna-se
exigente saber o que se diz, como se diz, a quem se dirige ou mesmo
como deve ser dito. Com efeito, há termos e expressões que já não
passam no código deste tempo... embora se possa ainda verificar uma
disfunção de mensagem entre o emissor e o receptor... eclesial e,
particularmente, eclesiástico. Será que esta desconexão explica um
certo afastamento das pessoas à prática da fé cristã/católica?
Não será que os documentos e comunicações da hierarquia – notas
pastorais, homilias e sermões – ou no simples acolhimento/recepção
a quem se aproxima dos serviços da Igreja e se usa num certo âmbito
eclesiástico, mas que muitos leigos não entendem? Ou não será que
a inteligência precisa de se saber adaptar a quem ouve e não ficar
no código de quem fala? Já percebemos que o nível cultural não
está só junto do altar, no púlpito e no confessionário?
=
... À capacidade de diálogo
Agora
que passam cinquenta anos sobre a eleição do Papa Paulo VI – esse
venerável homem de Deus e da Igreja, que teve de levar à prática o
Concílio Vaticano II – talvez seja oportuno recuperar as formas de
diálogo que progessivo e respeitoso com que ele nos quis desafiar,
na encíclica ‘Ecclesiam suam’ de 6 de agosto de 1964, ao
propor-nos os quatro círculos de diálogo: com tudo o que é humano,
com os crentes em Deus, com os cristãos - irmãos separados e no
interior da própria Igreja católica.
Certamente
que já podemos reconhecer que há passos percorridos, mas tantos
outros ainda precisam de ser andados, na confiança e na aceitação...
da diversidade para a unidade, sobretudo dentro da Igreja católica.
Dizia
o Papa a terminar aquele documento: «Alegramo-nos
e sentimo-nos confortados ao observar que o diálogo no interior da
Igreja, e com os de fora que lhe estão mais próximos, se vai já
praticando: a Igreja está hoje mais do que nunca viva! Mas,
reparando bem, parece que tudo está ainda por fazer, o trabalho
começa hoje e não acaba nunca. É lei da nossa peregrinação na
terra e no tempo»
(n. 68).
Será
já verdade este sentimento na nossa Igreja católica? Como poderemos
crescer no diálogo quando ainda há tantos quintais nas nossas
paróquias? Até onde poderá ir a ousadia para derrubar barreiras em
vez de construir muros ou de construir pontes em vez de simular
degraus?
Temos
de ‘comer a prova’, isto é, de viver mais sinceramente da
Palavra da Deus e menos de rituais de religiosidade – valiosos e
festivos, mas tantas vezes ocos e com pouco nexo – popular, agora
que as (ditas) festas populares pululam por tudo quanto é canto e
esquina. O povo precisa de festa, mas tê-la-á mais viva se a festa
estiver esclarecida e amadurecida. Assim, mereçamos ser dignos da
confiança que em nós depositam!
António
Sílvio Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário