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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Comer a prova!


Por estes dias foi notícia: um determinado inquirido, em processo de investigação, quando realizavam buscas a sua casa, terá tirado das mãos do inspector um papel que terá comido... inviabilizando as recolha de provas.

Não nos importa o caso judicial nem tão pouco as pessoas envolvidas e muito menos o que envolveria o (tal) papel comido, mas tão somente, pretendemos aproveitar aquele episódio – o comer da prova – para reflectirmos sobre outros aspectos da nossa conduta diária, pessoal, social, política, etc... onde o que comemos – sobretudo na índole intelectual/cultural – diz do que somos e manifesta o que podemos ser, de verdade.

= Do comer o livro...

Quem conhece minimamente algumas referências bíblicas sabe que, tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, nos aparecem textos em que o profeta, no caso de Ezequiel e quem recebe a revelação no Apocalipse, João, são desafiados a ‘comer o livro’, numa expressão de assimilar a mensagem que deve ser proferida. Diga-se que, na linguagem bíblica, este ‘comer o livro’ ou algo parecido, significava ser investido numa missão, a de profeta ou de mensageiro de Deus. Por isso, o enviado/profeta tem de adequar o que diz em palavras – agora diz-se ‘narrativa’, comunicação ou mesmo profecia – humanas àquilo que o emissário divino lhe concede ou investe que faça.

Ora, numa época de inflação da palavra ou até de bastante, torna-se exigente saber o que se diz, como se diz, a quem se dirige ou mesmo como deve ser dito. Com efeito, há termos e expressões que já não passam no código deste tempo... embora se possa ainda verificar uma disfunção de mensagem entre o emissor e o receptor... eclesial e, particularmente, eclesiástico. Será que esta desconexão explica um certo afastamento das pessoas à prática da fé cristã/católica? Não será que os documentos e comunicações da hierarquia – notas pastorais, homilias e sermões – ou no simples acolhimento/recepção a quem se aproxima dos serviços da Igreja e se usa num certo âmbito eclesiástico, mas que muitos leigos não entendem? Ou não será que a inteligência precisa de se saber adaptar a quem ouve e não ficar no código de quem fala? Já percebemos que o nível cultural não está só junto do altar, no púlpito e no confessionário?

= ... À capacidade de diálogo

Agora que passam cinquenta anos sobre a eleição do Papa Paulo VI – esse venerável homem de Deus e da Igreja, que teve de levar à prática o Concílio Vaticano II – talvez seja oportuno recuperar as formas de diálogo que progessivo e respeitoso com que ele nos quis desafiar, na encíclica ‘Ecclesiam suam’ de 6 de agosto de 1964, ao propor-nos os quatro círculos de diálogo: com tudo o que é humano, com os crentes em Deus, com os cristãos - irmãos separados e no interior da própria Igreja católica.

Certamente que já podemos reconhecer que há passos percorridos, mas tantos outros ainda precisam de ser andados, na confiança e na aceitação... da diversidade para a unidade, sobretudo dentro da Igreja católica.

Dizia o Papa a terminar aquele documento: «Alegramo-nos e sentimo-nos confortados ao observar que o diálogo no interior da Igreja, e com os de fora que lhe estão mais próximos, se vai já praticando: a Igreja está hoje mais do que nunca viva! Mas, reparando bem, parece que tudo está ainda por fazer, o trabalho começa hoje e não acaba nunca. É lei da nossa peregrinação na terra e no tempo» (n. 68).

Será já verdade este sentimento na nossa Igreja católica? Como poderemos crescer no diálogo quando ainda há tantos quintais nas nossas paróquias? Até onde poderá ir a ousadia para derrubar barreiras em vez de construir muros ou de construir pontes em vez de simular degraus?

Temos de ‘comer a prova’, isto é, de viver mais sinceramente da Palavra da Deus e menos de rituais de religiosidade – valiosos e festivos, mas tantas vezes ocos e com pouco nexo – popular, agora que as (ditas) festas populares pululam por tudo quanto é canto e esquina. O povo precisa de festa, mas tê-la-á mais viva se a festa estiver esclarecida e amadurecida. Assim, mereçamos ser dignos da confiança que em nós depositam!


António Sílvio Couto

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