E
de repente uma certa parte do país começou a cantar – nalguns
casos desafinadamente – a canção: Grândola, vila morena. Muitos
se recordarão que este foi o tema que confirmou a boa execução da
revolta na madrugada de 25 de abril de 1974. Apropriada por uns
tantos – auto-denominados de democratas, embora nem sempre
respeitando quem pensasse de forma diferente – foi tema nos
primeiros anos da revolução, criando um ambiente de contestação,
de idealismo e até de utopia... imediatistas.
Será
que os tempos que estamos a viver – outra vez sob a mensagem da
dita canção – querem recuperar o espírito daqueles anos? Das
três vertentes aqui apontadas, qual delas está mais viva: será
sobretudo a contestação? Ou será que se torna presente um novo
idealismo? Ou, pelo contrário, estão a ser lançadas (novas ou
antigas) sementes de utopia?
No
passado havia uma tentativa de acreditar na democracia e talvez na
(pretensa) ‘terra da fraternidade’. Agora parece que o espírito
dos cantores/contestatários respiram, antes, uma espécie de
contestação da (própria) democracia... pelo menos sobre quem não
seja como eles. Tal como naqueles efervescentes anos de setenta e de
oitenta do século passado, há quem pareça só reconhecer a voz da
rua e não aceite a voz das urnas, isto é, dos votos. Também paira
no ar uma certa presunção de acusação a tudo e a todos,
particularmente se não pensam como uma certa clique (dita)
intelectual... germinada nas franjas das metrópoles de Lisboa e
Porto, embora tenham, hoje, muitos mais direitos – alguns
adquiridos sabe lá à custa de quê e/ou de quem! – do que os mais
desfavorecidos de outras regiões do país, sobretudo no interior,
que as medidas políticas conseguiram desertificar, nos últimos
trinta anos.
Se compararmos os intervenientes das duas épocas – distantes mais de três décadas – do cançonetismo de ‘Grândola’ e afins, poderemos encontrar muitas diferenças:
-
no passado era gente que ansiava ter... ao menos o suficiente; agora
são pessoas que têm a nostalgia do já tido... perdido com dó e
sem glória.
-
no passado os rostos eram de gente quase esfomeada e em busca do
pão... pelo menos o essencial; agora vemos pessoas endividadas por
provocadores de sonhos, mas que não os advertiram sobre as
consequências da possibilidade de poderem perder o emprego...
repentinamente.
-
no passado encontravamos gente que estava a recuperar dos traumas da
guerra colonial... onde muitos filhos tinham caído ingloriamente;
agora somos confrontados com pessoas que nunca tiveram de viver a
ansiedade da guerra... numa Europa que até não pagou para não
produzirmos nos sectores primários da nossa economia.
Grandolamente
falando, vivemos num tempo complexo, quer pelas circunstâncias
económicas, quer pelas razões mais básicas do bem-estar que não
conseguimos manter.
Grandolamente
falando, temos de saber distinguir quem nos manipula e quem nos fala
verdade... se bem que não dizer nada ou falar meia verdade já será
enganar.
Grandolamente
falando, precisamos de saber quais serão as consequências de
embarcarmos nesta onda de malcriadez, pois o rastilho está prestes a
incendiar-se.
Grandolamente
falando, vale mais permitir a indignação – cívica, musical e um
tanto civilizada – do que as pedras, os cocktails e as pilhagens,
que já vimos noutras paragens... mesmo europeias.
Grandolamente
falando, será que ainda há esperança para Portugal, para os
portugueses e nesta história?
António
Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)
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