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sábado, 20 de agosto de 2011

Novos desafios filosóficos ao cristianismo... atual

Quais são as (possíveis) causas de um acentuado abandono da vivência da fé, particularmente, em condição de Igreja, sobretudo na dimensão católica? Que mudou tanto psicologicamente para que as pessoas se tenham afastado das propostas da Igreja? Terá havido algo que, filosófica e culturalmente, se alterou para que, no nosso tempo, vivamos segundo outros aspetos que, anteriormente, eram fatores de estabilidade? Como podemos viver em consonância com os valores do Evangelho, neste mundo secularizado e, sobretudo, laicizado, numa perspetiva quase anti-cristã?
Por ocasião do surgimento do cristianismo – há mais de dois mil anos – vigoravam, ‘grosso modo’, duas grandes correntes filosóficas, com razoávies incidências sociais e religiosas, denominadas estoicismo e epicurismo... como formas diametralmente opostas de ver a vida e de a viver... pessoal e socialmente.
Em resumo vejamos como se caraterizavam estas correntes filosóficas:
* O ‘estoicismo’ propõe-se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. A escola estóica foi fundada no século III a.C. por Zenão de Cítio e que preconizava a indiferença à dor de ânimo oposta aos males e agruras da vida, devendo manter a serenidade perante as tragédias e as coisas boas. Diz-se estóico aquele que revela fortaleza de ânimo e austeridade, impassível, imperturbável, insensível.
* ‘Epicurismo’ é o sistema filosófico ensinado por Epicuro, que acreditava que o maior bem era a procura de prazeres moderados de forma a atingir um estado de tranquilidade (ataraxia) e de libertação do medo, assim como a ausência de sofrimento corporal (aponia) através do conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. A combinação desses dois estados constituiria a felicidade na sua forma mais elevada.
A finalidade da filosofia de Epicuro não era teórica, mas prática e que buscava sobretudo encontrar o sossego necessário para uma vida feliz e aprazível, na qual os temores perante o destino, os deuses ou a morte estavam definitivamente eliminados.

= Como é que estas duas vivências filosóficas terão influenciado (mais ou menos) o cristianismo? Será que o pensamento cristão tomou partido por algumas destas filosofias? A práxis cristã gerou mais adesão ao estoicismo ou ao epicurismo?
Tentaremos, agora, esmiuçar alguns aspetos destas correntes ético/filosóficas em ordem a perceberemos como é que hoje vivemos – na Igreja como no mundo – mais sobre a condução de uma ou de outra.

# De uma certa referência ao estoicismo...
Segundo alguns autores, sobretudo com fundamentação na patrística, o cristianismo – sobretudo na hora da sua formulação ético-religiosa – como que teve uma escolha mais da vertente estóica em detrimento da vivência epicurista. A máxima de indiferença sobre o sofrimento deixou marcas na teologia cristã, criando mesmo – no contexto da paixão de Cristo – um exemplo máximo de imperturbabilidade... diante das agruras e dificuldades da vida.
Assim o ‘bom cristão’ será (ou seria) aquele que fosse capaz de viver em serenidade – ao menos exterior – perante as mais variadas dificuldades da vida, tanto pessoal como com os outros. Até a contemplação de Jesus no processo da Sua paixão se torna uma espécie de modelo extremo dessa ‘indiferença’ e mesmo de purificação nas dificuldades da vida (dita) normal.
De algum modo a espiritualidade (particularmente) católica – sobretudo após a etapa da Reforma – foi criando, na mentalidade latino/romana uma forte apetência pelo estóicismo – tanto pessoal como social – com atos de culto e de religiosidade, onde cada um tentava purificar-se pelo sacrifício assumido ou imposto pela penitência em desconto pelos pecados... mais pessoais do que sociais.
Mesmo que inconscientemente fomos – dizemo-lo sem pejo nem mágoa – formados na escola de um certo estoicismo cristianizado, onde cada momento de contrariedade era (ou é) como que visto na linha de sofrermos em desconto dos nossos pecados pessoais e até sociais. Ora, certos atos de penitência – sobretudo na época da Quaresma – como que soam a gestos coletivos de compensação pelo mal feito e que podem ter ofendido a santidade divina.  

# ... À escolha (atual) do epicurismo
Por outro lado, dada essa escolha preferencial pelo estoicismo, o epicurismo entrou numa linha de (quase) demonização, pois o prazer da vida – ‘carpe diem, sape vinem’ – como que se tornou uma espécie de ofensa à vitória sobre a nossa condição de tentados e (mesmo) de pecadores.
Se o sacrifício – da proposta estóica – era como que uma vitória sobre nós mesmos, o prazer – da mentalidade epicurista – revestiu-se de uma certa cedência ao pecado na carne e daquilo que ela significava...
Ora, tendo muitos dos nossos contemporâneos, de algum modo, sacudido o condicionamento da barreira ético/religiosa... cristã, o prazer – mesmo que desregrado de qualquer ética normativa – conquistou a práxis mais popular, sendo, hoje, confrontados com as razoáveis consequências em que cada um faz o que lhe apetece, desde que isso lhe dê prazer e até lhe possa criar pouca relutância moral... Com efeito, a norma moral passou do absoluto para o relativo, onde cada um é como que a bitola do seu próprio comportamento e já não se deixa guiar por um quadro de moralidade... exterior e mesmo coletiva.
Deste modo o epicurismo foi-se sobrepondo, progressivamente, ao estoicismo, gerando uma nova moral com as suas regras de conveniência... ao ritmo das consequências e não das causas: cada pessoa tornou-se ela mesma como que a regra de comportamento, mesmo que isso possa colidir com outros absolutos relativos... concorrenciais.

# Alguns desafios em tempo de mudança
Atendendo a alguma confusão que, entretanto, se foi criando – onde a máscara estóica foi substituída pela personagem hedonista – a vivência atual traz-nos alguns desafios:
- Somos mais do que sensações corporais. Temos de interagir com os outros sabendo respeitá-los nos seus valores... mesmo que não declarados, mas, ao menos, subentendidos.
- Somos seres de dádiva e não de mera sensação. Temos de promover a valorização da dimensão espiritual, respeitando e sendo respeitados... seja qual for o/a nosso/a interlocutor/a.
- Somos pessoas em relação e não meras figuras descartáveis. Temos de valorizar, conveniente e corretamente, a dimensão do prazer sem ofender a presença de Deus em nós mesmos e nos outros e de vermos os outros em Deus.
Numa palavra: o prazer – seja qual for a sua dimensão de intercomunhão – nem sempre é mau, desde que tenhamos todos bem clara e viva a dimensão divina como espaço de relação e de comunicação.   

A.Sílvio Couto


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