Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Quem tem medo do ’25 de novembro’?

 

Decorridos quase cinquenta anos sobre a efeméride ainda há quem não consiga perceber o significado da data de ’25 de novembro de 1975’, como uma segunda etapa do que aconteceu em abril de 74. Embora haja quem compreenda o significado do ’25 de novembro’, outros continuam aferrados aos seus preconceitos, mesmo que a expressão eleitoral se venha a tornar quase residual... o tempo passa e as convicções deixam a nu a falta de razão.

1. Um dos arietes do ’25 de novembro’ foi Ramalho Eanes, comandante operacional do acontecimento e que foi presidente da República entre 1976-1986. Será útil recordar o que ele disse e escreveu sobre esta data em apreço. «Não percebo que estigmatizem o 25 de Novembro, porque o 25 de Novembro é a continuação do 25 de Abril; é a reafirmação de que as promessas feitas pelos militares à população portuguesa se mantêm, e se mantêm com toda a força, seja como for, quaisquer que sejam os obstáculos”. É altura de reconhecer que “houve um período muito complicado entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, que houve movimentos que tentaram – compreensivelmente, em minha opinião – impor as suas ideologias, o que, obviamente, o MFA não permitiu, porque isso seria, de alguma maneira, contrariar, não responder, não respeitar a promessa de Abril. E portanto, tivemos de fazer o 25 de Novembro, mas, a partir daí, o país criou unidade, unidade plural, obviamente... Entendo que o esquecimento do 25 de Novembro não ajuda a democracia, porque a história não se apaga. É com a história, e regressando à história, de forma não endémica nem nostálgica, que aprendemos a evitar erros futuros»

2. Quem assim se exprime sabe daquilo que fala e deve-nos fazer tomar consciência de que pode haver erros, exageros e tropelias, mas também podem ser corrigidos, atenuados ou servirem-nos de lições para o futuro. Foi isso que o ’25 de novembro’ quis operar. Com efeito, a maioria dos deputados assentados no atual parlamento eram, pelo menos imberbes, à data da revolução de abril. Uns tantos – e no feminino também – são filhos dos que desenvolveram o PREC, entre assaltos e atentados, com brigadas revolucionárias e acusações de capitalismo... afundando empresas e atirando para o desemprego os seus apaniguados. Alguns contestaram a adesão à União Europeia e a pertença ao euro, mas usufruem boas maquias quando são deputados no Parlamento Europeu.

3. Recordemos, por isso, sucintamente alguns dos acontecimentos ocorridos nos dezanove meses entre o ’25 de abril de 74’ e o ’25 de novembro de 75’. Datas como o ‘11 de março’ ou o ‘28 de setembro’, sem esquecer os comícios inflamados em certas zonas da ‘margem sul’ do Tejo, a destruição da Rádio Renascença... com a resposta das manifestações em Braga, em frente à Sé catedral, a cadeia de limpeza de certas sedes partidárias, a avalanche de cidadãos (rotulados) de ‘retornados’, as emboscadas e rusgas arbitrárias em várias zonas do país, as perseguições e confrontos por ocasião da ordenação do primeiro bispo de Setúbal, em outubro de 1975... são alguns dos acontecimentos que perfizeram o hiato entre o ‘25 de abril de 74’ e o ‘25 de novembro de 75’. Varrer para debaixo do tapete da História esses factos – nalguns casos com forte repercussão em famílias e sociedades – seria esconder algo que traumatizou o país...irremediavelmente.

4. O ’25 de novembro’ não foi nem pode ser a esponja sobre algumas das malfeitorias de pessoas que agora têm medo que se descubra o passado pessoal e familiar. Não podemos continuar a tratar como heróis figuras que contribuiram – e desgraçadamente ainda hoje – para o retrocesso do país só porque querem ficar nos louros revolucionários da adolescência. Basta de afrontas. Assumam o que fizeram e deixem que o país real caminhe para o desenvolvimento. Quando serão responsabilizados pelas fábricas que fizeram ruir e levaram para o desemprego tantos que os seguiram acriticamente? A história não se reescreve como faziam noutras paragens que eles queriam impor em Portugal e que o ’25 de novembro’ corrigiu... A verdade, sempre!



António Sílvio Couto

sábado, 16 de novembro de 2024

Movimento 4B – que significa entre nós?

 


Em 2019, teve origem na Coreia do Sul, um movimento atualmente conhecido como 4B, no qual as mulheres negam principalmente quatro ações, todas começadas por B: ‘bihon’ - a recusa do casamento heterossexual; ‘bichulsan’ - recusa de engravidar; ‘biyeonae’ - recusa de namorar; ‘bisekseu’ - recusa de relações sexuais heterossexuais. Este dito movimento feminista tem vindo a crescer em visibilidade, sobretudo, nos Estados Unidos da América e por ocasião das recentes eleições presidenciais.

1. Que implicações – a curto ou a médio prazo – pode ter este movimento no nosso país? Será mais uma moda, recauchutada pelos americanos, ou uma vaga mais profunda das sociedades? Como se pode entender mais a fundo esta questão? Que razões – lá (Coreia do Sul e EUA) e por cá – levam a encetar estas reações? Não será que este movimento 4B é mais do que simbólico, mas paradigmático das contestações feministas à volta do planeta? Até onde irá esta onda de ideologia de género tácita ou explícita?

2. Atendendo aos mentores, promotores, difusores e patrocinadores deste movimento 4B, temos de estar atentos às raízes da questão, bem como às consequências da sua difusão. Com efeito, mais do que rejeitar – casamento heterossexual, ter filhos, namorar ou ter relações heterossexuais – tudo isto implica uma outra opção homossexual presumida ou assumida, como se fosse um grito de libertação contra tudo quanto possa alembrar outro sexo, o masculino. Embora se possa revestir de luta contra as manifestações de machismo – primeiro na Coreia do Sul e depois nos EUA – isso tenho ganho maior proporção em países e culturas onde a mulher continua desfavorecida e mesmo explorada… tanto em casa como na vida laboral, social e pessoal.

3. Efetivamente estamos no século XXI, com problemas que são e se prolongam do século da industrialização: a discrepância de salários entre homens e mulheres continua a ser algo de significativo, até porque muitas delas têm habilitações e instrução superior a eles. Agora que estamos numa crescente alfabetização torna-se ofensivo, degradante e mesmo provocatório que os homens, pela simples razão de o serem, continuem a usufruir de vencimentos superior às mulheres, mesmo que exerçam trabalho idêntico e a par uns dos outros. Esta vertente agravante nalgumas sociedades não pode uma razão tão extremista que se capta no subterrâneo do movimento 4B.

4. Consideremos, no entanto, algumas das causas do movimento 4B: a rejeição da vida transmitida pela via sexual entre homem e mulher, a abjuração da complementaridade sexual e a repulsa ao não-feminino. Ao nível cristão nada disto tem razão de ser nem sustenta a vida de compromisso social e cultural da família. Aliás, esta parece estar fora dos critérios do dito movimento 4B. A família poderia ser algo à la carte, nesse sentido tão difundido por setores com maior ou menor propaganda na comunicação social.

5. De uma coisa parece que podemos ter presente: este movimento tem poder não só de intervenção, mas também económico e com expressão transnacional. Esta tendência de internacionalizar questões locais e regionais tem vindo a crescer nos nossos dias, criando a sensação de que alguém comanda isto tudo e faz com que, algo que parecia lateral e secundário, emerja como normal e com larga difusão ao longe e ao largo. Aquilo que noutros tempos soaria a disfunção de uma pessoa contestatária e fora dos esquemas gerais, agora assume foros de normalidade e como manifestação generalizada de uma certa cultura.

6. Algo ainda preocupante é perceber que muitos destes motivos de luta, de confronto ou de dissonância se situam no contrário dos valores do Evangelho ou como repulsa deles mesmos. Depois da família e da vida podemos encontrar outras vertentes bem mais pessoais e com incidência na personalidade de cada um. Aquilo que foi considerado tabu em certas culturas e expressões religiosas, agora saiu do armário e pavoneia-se na via pública. Até quando conviveremos com esta multiplicidade de éticas? Estaremos preparados para responder, cristãmente, à altura dos factos e das situações?


António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Sínodo dos Bispos apresenta orientações

 


Terminada a segunda sessão da XVI Assembleia Geral ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu, em Roma, de 2 a 27 de outubro de 2024, foi apresentado o documento final. Neste lê-se no número onze: «O Documento Final exprime a consciência de que o chamamento à missão é, ao mesmo tempo, chamamento à conversão de cada Igreja particular e de toda a Igreja, na perspetiva indicada na Exortação Apostólica Evangelii gaudium (cf. n.º 30). O texto é composto por cinco partes.

A primeira, intitulada O coração da sinodalidade, delineia os fundamentos teológicos e espirituais que iluminam e alimentam o que se segue. Reafirma a compreensão partilhada da sinodalidade que emergiu na Primeira Sessão e desenvolve as suas perspetivas espirituais e proféticas. A conversão dos sentimentos, imagens e pensamentos que habitam os nossos corações prossegue juntamente com a conversão da ação pastoral e missionária.

A segunda parte, intitulada Juntos, na barca, é dedicada à conversão das relações que constroem a comunidade cristã e configuram a missão no entrelaçamento de vocações, carismas e ministérios.

A terceira, “Lançai a rede”, identifica três práticas que estão intimamente ligadas: discernimento eclesial, processos de decisão e cultura da transparência, da responsabilidade e da avaliação. Também em relação a estas, somos convidados a iniciar caminhos de “transformação missionária”, para os quais é urgente uma renovação dos organismos de participação.

A quarta parte, sob o título Uma pesca abundante, descreve como é possível cultivar em novas formas a permuta de dons e o entrelaçamento dos laços que nos unem na Igreja, numa altura em que a experiência de estar enraizado num lugar está a mudar profundamente.

Segue-se uma quinta parte, “Também eu vos envio”, que nos permite olhar para o primeiro passo a dar: cuidar da formação de todos no Povo de Deus em sinodalidade missionária».

No número subsequente explica-se o método usado para o percurso feito pelo mesmo documento: «a elaboração do Documento Final é guiada pelos relatos evangélicos da Ressurreição. A corrida ao túmulo na madrugada de Páscoa, a aparição do Ressuscitado no Cenáculo e na margem do lago inspiraram o nosso discernimento e alimentaram o nosso diálogo… Com este documento, a Assembleia reconhece e testemunha que a sinodalidade, uma dimensão constitutiva da Igreja, já faz parte da experiência de muitas das nossas comunidades. Ao mesmo tempo, sugere caminhos a seguir, práticas a implementar, horizontes a explorar. O Santo Padre, que convocou a Igreja em Sínodo, dirá às Igrejas, confiadas ao cuidado pastoral dos Bispos, como prosseguir o nosso caminho apoiado na esperança que “não engana” (Rm 5,5)».

= Traçadas estas linhas gerais precisamos de encetar o difícil e quase-complexo processo de receção do mesmo, atendendo à participação de todos os fiéis – nessa linguagem do Código de Direito Canónico (cânone 204 § 1) – que inclui nesta terminologia todos os batizados, sem os classificar por vocações ou por ministérios, na sua diversidade e/ou complementaridade.

= Embora a terminologia ‘sinodalidade’ continue a deixar alguns setores da Igreja na reserva, ela já fez caminho suficiente para que não nos interroguemos todos – clérigos e leigos, bem como religiosos – sobre a nossa tarefa que nos compete por direito próprio e não por exclusão de nada e muito menos de ninguém…

= O que é a espiritualidade sinodal? «A sinodalidade é, antes de mais, uma disposição espiritual que permeia a vida quotidiana dos batizados e todos os aspetos da missão da Igreja. Uma espiritualidade sinodal nasce da ação do Espírito Santo e requer a escuta da Palavra de Deus, a contemplação, o silêncio e a conversão do coração… Uma espiritualidade sinodal exige também ascese, humildade, paciência e disponibilidade para perdoar e ser perdoado. Acolhe com gratidão e humildade a variedade de dons e tarefas distribuídos pelo Espírito Santo para o serviço do único Senhor (cf. 1 Cor 12, 4-5)…Ninguém pode percorrer sozinho um caminho de espiritualidade autêntica. Precisamos de acompanhamento e apoio, incluindo a formação e a direção espiritual, como indivíduos e como comunidade» (‘Documento final’, n.º 43).



António Sílvio Couto

Como responsabilizar quem ofende a fé dos outros?

 

Por estes dias circulou nas (ditas) redes sociais um vídeo de uma rapariga cantando e tendo gestos de representação ao pé do altar e do sacrário de uma igreja na Covilhã. Para além da atuação quase descontrolada da ‘artista’ era audível ainda uma espécie de chacota com a letra de um refrão sálmico: ‘Senhor, Senhor, tu tens palavras de vida eterna’… A duração do episódio foi curta, mas deixou marcas aos mais atentos e alertados.

1. Embora ela seja já useira e vezeira neste tipo de provocações, desta vez deixou transparecer que, para além do desrespeito para com a fé dos outros – neste caso católicos, mas o que seria se fossem outras expressões religiosas? – pareceu não olhar a meios para atingir os seus fins, isto é, criar escândalo e com isso tentar ser conhecida e – como dizem no meio digital – seguida. A rapariga sofre de alguma lacuna psicológica e vai andando ao sabor desse critério tão normal quão vulgar: quanto pior melhor. Outros seguem-no nas áreas sociais, esta ‘artista’ da sua vulgaridade promove-se sem nexo nem pejo…

2. Se pararmos um pouco para analisarmos e avaliarmos o modo como muitas pessoas participam nas celebrações religiosas – sobretudo as de incidência social, batizados e casamentos, bem como outros momentos que implicam entrar e estar na igreja – podemos perceber que muitas pessoas não tem o mínimo de educação nem reparação adequadas aos atos e ao lugar: quantas vezes os trajes – tanto femininos como masculinos – seriam apropriados para outros ambientes, mas na igreja não colhem nem têm sentido. Por vezes faz-se mais imitação de cenas de filme ou de telenovela do que se atende às cerimónias religiosas. Em muitos casos tornar-se-ia conveniente chamar a atenção, mas isso seria dar importância a quem não tem bom senso nem sentido de respeito por si mesmo nem pelos outros…

3. Já estive em lugares de veraneio e com que banalidade víamos pessoas vestirem-se – mais seria correto dizer despirem-se – como se fossem para a praia, desde os mais simples pormenores até aos adereços menos corretos. Situações houve em que referi o exemplo de como reagiram as pessoas se me vissem com trajes litúrgicos na praia, considerariam, certamente, que estava fora do lugar e do modo de vestir. Com efeito, uma das formas mais fáceis de alertar para a anormalidade pode ser pela ridicularização.

4. Vivemos num tempo e num mundo onde uns tantos gostam de dizer e de fazer o que lhe dá gosto e, como referem, à sua maneira, mas não está proporcional a assunção de responsabilidade quanto aos seus atos, sobretudo aqueles que podem destoar da normalidade e do senso comum. Com bastante frequência encontramos pessoas que aduzem a ‘liberdade de expressão’ para saírem fora da caixa, mas se esquecem de assumir as consequências dos seus atos, por vezes, ofensivos até da liberdade alheia. A reciprocidade quanto àquilo que pode manifestar a maturidade das pessoas nem sempre é visto, entendido e atendido convenientemente.

5. Quem não se lembra do ‘ano internacional da tolerância’ em 1995? Desde então para cá esta palavra simples e acolhedora tornou-se mais sensível na conduta social. Desde 1996 que o dia 16 de novembro é considerado o ‘dia internacional da tolerância’, onde se prevê e se preconiza o respeito e a valorização da variedade de culturas, de formas de expressão e de maneiras do ser humano. Na promoção deste ‘dia da tolerância’ considera-se que se deve combater os discursos e as atitudes que podem conduzir ao medo e à exclusão. Segundo ainda a proposta deste ‘dia da tolerância’ a diversidade de religiões, de línguas, de culturas e de etnias no mundo não pode ser um pretexto para o conflito, mas uma oportunidade de enriquecimento de todos. Será?

6. Pena seja que a tolerância não se verifique nas partes de diálogo e não só na imposição unívoca de uma delas. Se queres ser respeitado, respeita quem seja diferente de ti, a começar nas pequenas coisas diárias…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

S. Martinho – ‘carnaval de inverno’?

 

A celebração da festa de S. Martinho ocorre precisamente quarenta dias antes do Natal, um pouco à semelhança do Carnaval por ocasião da Páscoa. Atendendo aos festejos exteriores e à coincidência de dias antes de uma e de outra das festas cristãs, há quem faça o paralelo entre uma e outra das datas.

De facto, numa sociedade ritmada pelas vivências dos mosteiros, como era a do tempo posterior à vida de grande São Martinho de Tours, vivia-se com intensidade, mesmo nos jejuns e nas penitências a preparação para o Natal.

Assim, essa espécie de folia que vemos associada ao ‘magusto’, por ocasião do S. Martinho, como que corresponderia aos folguedos do Carnaval para entrar nas penitências quaresmais.

Este paralelo entre S. Martinho e Carnaval dá-nos a perceber a seriedade com que se vivia a preparação tanto do Natal como da Páscoa... Será desta forma simples, alegre e exigente que vivemos o ‘S. Martinho’ para preparar a vivência cristã do Natal?

* Dada a importância e influência até popular da figura de São Martinho de Tours citamos o Papa Bento XVI na oração de Angelus do dia 11 de novembro de 2007.

«A Igreja recorda hoje, 11 de Novembro, São Martinho, Bispo de Tours, um dos santos mais célebres e venerados da Europa. Tendo nascido numa família pagã na Panónia, atual Hungria, por volta de 316, foi orientado pelo pai para a carreira militar. Ainda adolescente, Martinho encontrou o Cristianismo e, superando muitas dificuldades, inscreveu-se entre os catecúmenos para se preparar para o Batismo. Recebeu o Sacramento por volta dos vinte anos, mas teve que permanecer ainda por muito tempo no exército, onde deu testemunho do seu novo género de vida: respeitador e compreensivo para com todos, tratava o seu criado como um irmão, e evitava as diversões vulgares. Tendo-se despedido do serviço militar, foi a Poitiers, na França, junto do santo Bispo Hilário. Por ele ordenado diácono e presbítero, escolheu a vida monástica e deu origem, com alguns discípulos, ao mais antigo mosteiro conhecido na Europa, em Ligugé. Cerca de dez anos mais tarde, os cristãos de Tours, tendo ficado sem Pastor, aclamaram-no seu Bispo. Desde então Martinho dedicou-se com zelo fervoroso à evangelização no campo e à formação do clero.

Mesmo sendo-lhe atribuídos muitos milagres, são Martinho é famoso sobretudo por um ato de caridade fraterna. Quando era ainda jovem soldado, encontrou na estrada um pobre entorpecido e trémulo de frio. Pegou no seu manto e, cortando-o em dois com a espada, deu metade àquele homem. Nessa noite apareceu-lhe Jesus em sonho, sorridente, envolvido naquele mesmo manto.

O gesto caritativo de São Martinho inscreve-se na mesma lógica que levou Jesus a multiplicar os pães para as multidões famintas, mas sobretudo a deixar-se a si mesmo como alimento para a humanidade na Eucaristia, Sinal supremo do amor de Deus, ‘Sacramentum caritatis’. É a lógica da partilha, com a qual se expressa de modo autêntico o amor ao próximo. Ajude-nos São Martinho a compreender que só através de um compromisso comum de partilha, é possível responder ao grande desafio do nosso tempo: isto é, de construir um mundo de paz e de justiça, no qual cada homem possa viver com dignidade. Isto pode acontecer se prevalece um modelo mundial de autêntica solidariedade, capaz de garantir a todos os habitantes do planeta o alimento, as curas médicas necessárias, mas também o trabalho e os recursos energéticos, assim como os bens culturais, o saber científico e tecnológico».

* Atendido ao essencial da vida e do ministério de São Martinho talvez devamos colher as lições de partilha e de fraternidade que ele viveu e testemunhou, não aconteça de que o nosso comportamento se possa tornar mais de escândalo do que de edificação, dentro e fora dos espaços da Igreja. Como seria útil e conveniente que colhêssemos de São Martinho mais as causas do que as consequências, mesmo na degustação do magusto, tão típico e simbólico nesta época do ano…



António Sílvio Couto

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Eleições nos EUA – gorgulho do preconceito

 

O resultado das eleições nos Estados Unidos da América trouxeram à luz do dia uma certa confusão que reinava e continua a singrar nalguns setores da comunicação social, dizemo-lo, simbolicamente, só na vertente de expressão lusitana. Com efeito, os mais de duzentos milhões de eleitores americanos escolheram de forma clara quem querem que os governe, mesmo que isso possa criar engulhos em que se sente (sentimental e ideologicamente) derrotado… De facto, vimos proliferar nas nossas hostes jornaleiras posições de pessoas que se apelidam de ‘democratas’, mas só o são quando ganham os da sua simpatia.

1. O vencedor, Donald Trump não colhia muita preferência em diversos níveis da Europa e de outros países ditos do arco ocidental. No entanto, nas hostes nacionais Trump foi o mais votado em vinte e nove estados (294 votos de grandes eleitores) e Kamala Haris em dezanove estados (com 225 voto no colégio eleitoral)… Estes resultados como que contrariaram as sondagens, especializadas em confundir e em deixarem cada qual na expetativa de ganhar a sua preferência, mesmo naqueles que nada tinham a pronunciar-se.

2. No título deste texto apresentamos a palavra ‘gorgulho’ como adjetivo deste ambiente suficientemente preconceituoso com que tivemos (ou teremos) de viver nos tempos mais recentes e na leitura ideológica dos resultados das eleições americanas. ‘Gorgulho’, conhecido também como ‘caruncho’ é uma espécie de praga que ataca as culturas agrícolas (milho, arroz, trigo) e, quando dá para proliferar, torna-se de difícil combate. O gorgulho penetra nas sementes, deixando-as sem conteúdo e só com a parte exterior… Ao nível psicológico o gorgulho é de tremenda complexidade, pois mina a confiança, embora pareça que nada acontece; deixa um rasto de destruição só percetível mais tarde; cria nas pessoas e nas instituições graves consequências…

3. A gorgulhocracia tem hoje foros de pandemia, pois vemos emergirem tantas posições políticas, sociais e culturais que temos de saber discernir onde se enraízam certas tomadas de comportamento: tantos/as que se engrandecem à custa do mal alheio, numa espiral de maledicência que se vai tornando um modo de ser e de estar generalizado. Efetivamente há muitas pessoas que colocam uns óculos de manobra para tentarem pronunciarem-se sobre estas questões que têm envolvido as eleições nos Estados Unidos da América: qual verme que corrói, assim nos querem condicionar a pensarmos segundo aquilo que temos visto e ouvido nas televisões e veiculado pelos jornais.

4. Será que temos de duvidar da sanidade dos americanos, quando escolheram Trump em detrimento de Kamala? Onde está a verdade, lá, onde conhecem os candidatos e aquilo que propõem, ou por cá, onde nos tentam intoxicar com ideias que são mais ideologias do que notícias? Com que direito podemos interferir nas escolhas dos americanos, se vão ser eles quem irão ser governados por quem escolheram? Não andaremos a ser manipulados por mentores transnacionais sem crença nem lugar para Deus?

5. Repare-se no sururu que foi a resposta que o Papa Francisco deu à pergunta sobre em quem votaria, se pudesse, nas eleições americanas? Respondeu que em nenhum, pois ambos apresentavam propostas contra a vida… Seríamos capazes de seguir este critério nas nossas escolhas na hora de votar? Com efeito, as propostas contra os valores do Evangelho são mais do que muitas e saber ter opinião é estar esclarecido para decidir…

6. Os tempos que vivemos são de grande desafio. Lá como cá, temos de não confundir o essencial com o secundário nem de trocar o verdadeiro pelo efémero.



António Sílvio Couto

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Abstenção de carne à segunda-feira?

 

A representante única de um partido no Parlamento fez a seguinte proposta (na classificação de projeto de resolução): «considerando o impacto significativo das escolhas alimentares na emissão de gases com efeito de estufa, a Assembleia da República deverá instituir, para os deputados e demais funcionários, o projeto "segundas-feiras sem carne… [isto é] uma vez por semana apenas opções totalmente vegetarianas… A adoção de um dia vegetariano na semana visa não apenas contribuir diretamente para a diminuição das emissões no setor público, mas também estimular uma reflexão mais ampla sobre os hábitos alimentares e o seu impacto ambiental e de saúde».

Eis uma proposta na linha dessa pretensa ‘nova religião’ vegan e afins, com bastantes seguidores de fachada.

1. Esta senhora é de um partido dito de incidência ecologista (pessoas-animais-natureza), mas talvez desconheça – ou seja ignorante – sobre o tema da abstinência semanal de carne, já vivenciada noutras instâncias com outra expressão, relevando o significado cultural e espiritual. As grandes religião monoteístas e sobretudo as do Livro – judeus, cristãos e muçulmanos – propõem aos seus seguidores tempos e etapas de jejum, mais em função do autodomínio (ou temperança) do que como ricochete de panteísmos subterrâneos.

2. Mesmo que sucintamente o que é o veganismo? O veganismo é um estilo de vida que tem como objetivo excluir o uso de animais na alimentação, como carne, ovos, peixes, laticínios e mel. A pessoa vegana também não usa roupa feita de couro ou pelos naturais e produtos com ingredientes de origem animal ou testados em animais. Assim, na dieta vegana é priorizado o consumo de alimentos de origem vegetal, como cereais, leguminosas, frutas, vegetais, tubérculos, óleos vegetais, sementes e oleaginosas, por exemplo.

3. Este tema da contenção para com certos ingredientes na alimentação podem ser tão interessantes quão bizarros, na medida em que, alguns desses difusores vegan, são poucos democráticos para com quem não alinha nas suas pretensões e nalguns casos tornam-se fundamentalistas sem respeito pela diferença. A sugestão apresentada neste contexto é mais do que evidente dessa espécie de sobranceria com que certas forças se consideram a submeterem outros às suas ‘ideias’…

4. De facto, estas novas ‘modas’ de restrições alimentares como que sofrem de um substrato sem nexo e de uma razoável falta de respeito para com quem passa fome, pois certas propostas não passam de subterfúgios do excesso por contraste com quem não tem o suficiente para se alimentar. Se o veganismo – e outras sugestões afins – fossem a solução para a fome no mundo já teriam conseguido apresentar resultados. Mas não, o que têm conseguido é gastar ainda mais recursos para levarem a sua pretensão à (possível) vitória.

5. De entre todas as expressões religiosas mais significativas somente os católicos não impõem qualquer restrição a nenhum dos alimentos. Em quase todas as religiões há algo que é proibido. Entre os católicos não se apresenta nada que possa não servir de alimento. Isso exige mais capacidade de discernimento quanto a todos os ingredientes usados na alimentação, onde a moderação (temperança, domínio de si mesmo) se deve sobrepor ao exagero seja nos que quer possa ser.

6. Sem querermos julgar a sugestão do jejum de carne à segunda-feira, isto soa a uma espécie de farisaísmo laico, que deseja dar boa impressão, mas não modifica nada de cada pessoa nem contribui minimamente para a mudança do mundo. Segundo as palavras do Papa Francisco, o verdadeiro jejum é partilhar com o faminto, ajudar o pobre ou o que tem menos que tu; é estender uma mão à viúva; é fazer companhia ao ancião; é dar do teu tempo para servir ao outro.

Podemos começar já e não esperar pela segunda-feira da desintoxicação!



António Sílvio Couto