Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 6 de abril de 2021

Mil artigos depois…em quase dez anos

 


Num destes dias tive a possibilidade de ver uma pequena beleza a partir do ‘moinho de vento do Gaio’, Moita, localizado num promontório sobranceiro ao braço do rio Tejo que banha o concelho da Moita. Dali se avista uma paisagem significativa e se vislumbram aspetos nem sempre detetáveis quando se anda pelas fraldas ribeirinhas…até das conjeturas e conjunturas humanas, sociais, políticas e culturais.

É diante desta apreciação – desconhecida, ignorada e talvez menosprezada – que gostaria de apresentar aquilo que se completa hoje: mil artigos neste blogue…ao longo de quase dez anos – teve início a 19 de agosto de 2011 – em que quis cumprir aquilo que está no subtítulo desta tarefa: ‘partilha de perspetivas…tanto quanto atualizadas’.

Foi isso que pretendi ao longo deste tempo, sem nunca contabilizar nada nem quais os assuntos a abordar, pela reflexão o mais livre possível, mas com bases cristãs; uma partilha despretensiosa, mas não anódina; querendo incomodar, mas respeitando quem possa pensar de forma diferente; num desejo sempre crescente de fazer ter opinião, sabendo que há quem possa discordar…

Na maior parte dos casos os textos publicados neste blogue tiveram luz de visibilidade em jornais de forma regular: todas as segundas-feiras no Diário do Minho, em Braga; na Voz de Lamego, às quartas-feiras; no Notícias de Beja, à quinta-feira… mas também no Jornal de Vieira e, mais recentemente, na Voz do Sado (Alcácer do Sal)… surgindo, por vezes textos, na Agência Ecclesia ou na comunicação eletrónica da diocese de Setúbal e, possivelmente, em tantos outros espaços de que não tenho conhecimento direto… De referir ainda que alguns textos – sobretudo nos anos de 2017 e 2018 – foram reunidos no livro – ‘Como poderei compreender, sem alguém que me oriente?’, publicado pela Paulinas Editora, em setembro de 2019.

Já me desafiaram para coligir textos publicados por ocasião da pandemia – isto é, desde março do ano passado. Tenho resistido a tal sugestão, pois não seria bom juiz em causa própria, particularmente porque teria de selecionar – nem tudo tem o mesmo valor ou pode ser valorizado de forma idêntica – e tal torna-se-me complicado, por não ter ainda distanciamento capaz…

 

= Esta doença de pretender escrevinhar vem de longa data, desde o tempo de estudante e tendo por escola a revista ‘Cenáculo’, do seminário conciliar de Braga, a completar por estes dias setenta cinco anos de existência. Estive lá entre 1979 e 1983, primeiro na redação e, a finalizar, como diretor. Fundada no após-guerra (1946) percorreu gerações de padres, alguns deles chamados, entre outras às episcopais e tantos forjados na arte-de-bem-escrever. Em mim semeou o gosto, posteriormente tentado noutras tarefas e com outras repercussões despretensiosas e humildes…

 

= Está subjacente à exposição das ideias, nos textos publicados, um método clássico na Igreja católica – ver, julgar e agir. Isso mesmo exercitado na contenção das palavras – dizem que hoje mais do que uma página A4 se torna difícil de seduzir para a leitura… isto é, temos de saber expor as nossas ideias até pouco mais do que setecentas palavras, traduzido em qualquer coisa como três mil carateres… É, por isso, necessário ir ao essencial para que não desliguem ao fim do primeiro parágrafo. Partir de um facto, lê-lo pela perspetiva cristã e tirar as consequências, expostas em forma de interrogação – pode dizer mais do que as observações conjeturais – fazendo aderir ou repugnar (isso não seria desejável) ao que foi escrito…

 

= Um desejo final: continuar a saber discernir os acontecimentos (histórias ou episódios, situações ou personagens) para trazer à reflexão, conseguir enquadrá-los na leitura cristã (mais do Evangelho do que das coisas rituais) e propor, na correta dimensão, aquilo que possa fazer de cada leitor uma pessoa com opinião bem argumentada, civilizada e respeitadora…

Tudo o que possa ser fora deste processo deixará de ser útil, verdadeiro e sincero! Assim o creio e tento viver.   

   

António Sílvio Couto

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Nesta governação-raspadinha

 Estamos a saque. Agora o jogo-de-sorte-e-de-azar suplanta o trabalho. Prefere-se investir mais na jogatana do que na ação de conseguir de forma honesta os meios de sobrevivência.

De facto, o vigésimo segundo governo constitucional tem sabido envolver a população com enleios de subtileza: granjeia sucesso colocando-o na atribuição de benesses, cada qual mais atraente do que a anterior. Se quiséssemos tipificar a atual governação poderíamos socorrer-nos do boom do jogo da raspadinha… pé-ante-pé se vão investindo os parcos recursos – pessoais, familiares, económicos ou sociais – sem grande trabalho: importa é ter, um dia, sorte…nem que isso se manifeste na desgraça total.

Ao longo dos anos fomos aprendendo a ouvir, a conviver ou a contatar com novas formas de jogo – muitas vezes com umas tais ditas ‘pretensões sociais’, mas criando dependências nos apostadores – tais como: lotaria (clássica ou popular), totobola, totoloto, euro-milhões, raspadinha ou placard… Poder-se-á considerar que a cada tempo – social, politico ou económico – assim foi surgindo um aliciante à bolsa dos portugueses, isto é, dinheiro ganho sem esforço e, seguindo a lógica habitual, o que não custou a ganhar também não custa a gastar…mesmo que seja com nova aposta em jogo.     

 1. O povo está viciado. É bom de ver as filas de pessoas – onde proliferam os mais velhos e muitas
mulheres – à porta dos locais de venda do jogo, particularmente da raspadinha. Desde já uma declaração de desinteresse: nunca joguei e nem sei como funciona a raspadinha… Sinto-me, nesta matéria, numa perfeita anormalidade! Segundo um estudo de âmbito nacional, em 2018, o valor das raspadinhas vendidas no nosso país foi de 1594 milhões de euros, o que significa que cada pessoa que apostou, gastou, em média, cerca de cento e sessenta euros por ano. Com valores variáveis de custo, isso se repercute na possibilidade de prémios, envolvendo cada vez mais pessoas viciadas nesta forma subtil de jogo…

 2. O povo está narcotizado. Qual droga de baixo custo, o jogo instantâneo da raspadinha como que se colou à pele de muitas pessoas, tornando-as dependentes de quererem ser ricas num golpe de sorte…que, na maior parte das vezes, se revela como de razoável azar. Na ânsia de dinheiro rápido, vemos pessoas de baixos recursos investirem o que têm e o que não têm neste jogo que é mais de azar do que de sorte, pois, quando esta acontece, logo se esfuma em mais jogo e crescente empobrecimento…

 3. O povo é manipulado. Em todo este panorama sociopolítico o que mais preocupa é sentirmos que quem governa usa da mesma estratégia, isto é, lança aliciantes para que o povo se iluda com subsídios e prebendas, sem se dar conta que terá de pagar os custos a breve trecho… mais rápido do que julga. Pela subtileza dos produtos agendados, a governação em curso lança sempre mais um ingrediente social, por forma a ir alimentando a chama que crepita em lume brando. A gestação desta crise de pandemia trouxe à vista que muita gente vive dependurada nos arranjos do Estado, de forma direta e indireta. Nota-se que o velho princípio de ‘pão e jogos’ é conjugado em quase todos os tempos e modos, parecendo só faltar adquirir – com benesses e mordomias – quem não alinhe no capcioso processo em curso. Não se sente já a ditadura do pensamento uniforme? Até onde irá o alinhamento de todos pelo ritmo da batuta governamental…socialista?  

 4. O povo é enganado. A ausência de verdade é hoje um risco de grande perigo, pois, por entre mentirinhas, se vai entretendo quem, a curto prazo, será taxado e esmagado com impostos, dado que não conseguiremos continuar a fazer-de-conta que outros pagarão a crise. Não, seremos nós, por agora enganados com habilidades e espertezas…duma certa esquerda. Àqueles que vociferam a torto-e-a-direito contra a União Europeia questionámos se já se advertiram qual seria a nossa situação se estivéssemos fora da UE? Por muito mal que estejamos, seria mais degradante a situação em isolamento patriótico…

De forma paradigmática podemos apresentar a ‘raspadinha do turismo’ como o exemplo mais contundente daquilo que nos querem fazer: enganam-nos com prémios e nós vendemo-nos na tentativa de sermos bafejados pela sorte…quando ela nos sair. Acordem!     

 António Sílvio Couto

sábado, 3 de abril de 2021

Missas a mais ou eucaristias a menos?


 Ao folhear as rubricas de sexta-feira santa lemos: ‘hoje e amanhã [sábado santo], segundo uma tradição antiquíssima, a Igreja não celebra a eucaristia’.

Tenho por costume dedicar algum tempo a ler atentamente as rubricas destes dias do tríduo pascal. Por muito que possamos saber, há sempre algo que se reaprende e se faz novidade, para que os momentos litúrgicos sejam vividos com a intensidade própria e propícia…

A questão que encima a pergunta deste título parece ainda mais pertinaz se atendermos ao longo jejum de não-missa presencial entre 22 de janeiro e 13 de março… nesta segunda dose de confinamento. Com efeito, o recurso às missas televisionadas ou através de redes sociais não condiz com a força comunitária da eucaristia. Novamente a ‘igreja’ (templo) deixou de ser ‘Igreja’ (mistério e serviço) porque nela não se reuniu presencialmente a ‘Igreja-comunidade’… Será que isso não nos fez doer na alma? Até que ponto a dimensão espiritual está suficientemente forte para não se deixar enfraquecer? As deserções agora verificadas serão circunstanciais ou poderão tornar-se continuadas? A chama está ainda acesa ou sente-se já o efeito em decrepitude? Os frequentadores-espetadores, em tantas missas, vão continuar ou serão selecionados mais rapidamente?

1. Diante de certos sinais podemos e devemos engendrar novas formas de respondermos aos problemas trazidos pela pandemia, pois as condições mudaram e as consequências adivinham-se dramáticas. Algum adormecimento ritualista abriu fissuras quase irreparáveis. Certas devoções claudicaram nos intentos. Umas tantas ‘cerimónias’ não se compadecem com presenças ocasionais ou de enfeite caciqueiro. Estar para ocupar lugar torna-se ofensivo, quando os disponíveis encolheram no espaço antes proposto…

 2. Para quando a reconquista das crianças, dos adolescentes e dos jovens às celebrações? A conexão entre ritmos sociais e festinhas de entreter começam a ser escusadas e sem sentido. As ditas missas da catequese, das crianças, dos escuteiros ou dos jovens percebe-se que foram opções sem resultado, pois, acabado o confinamento, continuam todos a deixar os lugares vazios e os espaços na expetativa…Continuamos a apostar em modelos de catequese falidos e os resultados estão à vista: um pequeno sopro de contrariedade e os ‘diplomas’ escafederam-se…

 3. Dizemos, teoricamente, que a família é a nossa aposta, mas não fazemos com que ela seja centro da celebração da fé: setores e idades da família sem diálogo. Poderão até irem todos à missa de domingo, mas não participam, em simultâneo, na mesma celebração, não escutam a mesma homilia, não acertam a mesma linguagem e, sobretudo, não se comprometem na mesma caminhada. É notório que não temos raízes suficientemente capazes de aguentar as intempéries desta pandemia, por isso, a debandada é generalizada e sem grandes expetativas de retorno a curto ou a médio prazo.

 4. Mesmo que sob a possibilidade de escandalizar os menos atentos, afirmo: temos missas a mais e a culpa não é só dos padres. Também os leigos são culpados, pois não travam os intentos clericais nem fazem todo o esforço por participarem nas missas que temos. À semelhança dos horários dos transportes públicos, em certas horas as igreja estão vazias e isso não é digno de quem se sinta responsável na Igreja e caminhe com a Igreja. Também é, tristemente, verdade que fazemos pouco esforço para aproveitarmos as possibilidades que nos são concedidas…multiplicando horas e sobrepondo horários.

 5. Em contexto de semana santa, sinto-me desafiado a não banalizar os mistérios celebrados, fazendo-o com dignidade e interiorização. Deixo, um breve exemplo, que ouvi há tempos: um monge contemplativo tinha por costume deixar o seu mosteiro e passar uns dias vendo como os padres celebravam a eucaristia na grande capital e não poucas vezes se aproximou de padres, no final da missa, questionando-os: o senhor acredita naquilo que esteve a fazer?

Sim, quem nos vir – seja qual for a nossa tarefa na Igreja – seria contagiado pela forma como nos vê a participar na missa, fazendo dela eucaristia de louvor, ação de graças e adoração?    

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 31 de março de 2021

Habilidades e espertezas

 


Por decisão governamental das zero horas de 6.ª feira (26 de março) até às vinte e quatro horas de 5 de abril (2.ª feira) está proibida a circulação entre concelhos. Desta forma se pretende condicionar, por ocasião das celebrações (religiosas ou sociais, económicas ou turísticas, tradicionais ou de neo-veraneio) do tempo da Páscoa, a deslocação das pessoas e com isso atalhar à não-propagação do vírus, que tem dado origem a esta pandemia.

Atendidos os casos previstos de exceção, sobretudo em razão de trabalho ou de prestação de auxílio a terceiros de forma justificada e por escrito, logo emergiram ‘soluções’ para tornear as regras gerais...Como bons portugueses, uns tantos mais espertos puseram a funcionar a sua capacidade habilidosa de subverter a ‘lei’ e com isso não cumprirem o que estava estipulado para todos. Dizem alguns dados que, até à hora estipulada para a restrição, ter-se-ão deslocado para mais de cem quilómetros da sua residência habitual, cerca de onze por cento dos portugueses... naquilo que daria quase um milhão de ‘deslocados’... Se atendermos , por outro lado, aos dados de deslocação dos portugueses por ocasião do Natal de 2020 – os mesmos cem quilómetros fora da residência habitual – pode verificar que só oito por cento o fizeram... com as consequências suportadas nos meses de janeiro e de fevereiro passados...

Nisso a que pretenderam designar de ‘confinamento a conta-gotas’ vimos nestes dados sobre os onze dias antes e depois da Páscoa como uma espécie de enxurrada quase sem-controlo e ainda roçando os laivos da provocação à cidadania, pois uns tantos acharam-se no direito de não cumprirem essas regras e disso fazem alarde ao aparecerem acintosamente nas televisões ou ao se ufanarem nas redes sociais... Daqui já se infere um aviso simples e linear: uma quarta vaga da pandemia se adensa no horizonte para o mês de maio com resultados ainda mais gravosos, à mistura com o processo de vacinação... titubeante em curso.

 = Confesso que há coisas que me confundem e baralham: haver quem se julgue mais esperto do que os outros, enquanto se apresenta – pública e notoriamente – como transgressor do mínimo respeito pelos demais. De facto, a convivência cívica é, antes de tudo, uma forma educada de ser respeitador das regras comuns de civismo, nada fazendo nem tão pouco povocando a exceção, mas a igualdade de comportamentos, pois estes ajudam a sermos corretos no querer e no agir. Ora, certas figuras – mais parecem figurões – gostam de aparecer como fora do comum, não se dando conta que podem estar a ofender a normalidade. Com efeito, os que sairam de casa para ‘gozarem as férias de páscoa’ terão assim tantos rendimentos para irem de bagagens para as praias algarvias? Os rendimentos auferidos permitem programar tão rapidamente férias, iludindo as regras de confinamento? Serão todos tão fartos de economias que suplantam o normal, fazendo-o excecional? Ainda haverá cristãos – católicos sociológicos – que trocam a vivência das coisas essenciais da fé pela transgressão mínima da legalidade?

 = Em ligação com este clima de resistência às regras da cidadania sinto alguma tristeza e mau-estar essa publicidade a ‘comida para animais’, quando, minutos antes ou depois, vemos na mesma tela, filas de pessoas a mendigarem algo para colmatar a fome pessoal e da família. Isto não lhes dá repugnância? A mim revolta-me as entranhas. Não é que os animais não mereçam o melhor (ou o possível) cuidado, mas trocar as pessoas, isso faz-me confusão e baralha-me as ideias.  Vivemos, efetivamente, numa convulsão ética de grande expressão, dando-se a possibilidade de os critérios de valoração estarem confundidos. Seria razoável que estivessem invertidos, pois bastava voltá-los ao contrário e ficariam na posição desejada como natural e normal, mas não esta forma caleidoscópica em que se encontram os valores torna-se muito difícil colocar tudo na ordem, isto é, segundo critérios onde pessoa humana seja o centro e não mais uma peça no puzzle de entretenimento...

Os episódios de esperteza e as habilidades de contornar as regras nestes dias da Páscoa, manifestam o egoísmo, a falsidade e o oportunismo com que vivem tantos dos portugueses. Que falta para os corrigir?      

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 29 de março de 2021

Silêncio

 


Quem gosta do silêncio? Como podemos caraterizar o silêncio? Haverá etapas de silêncio, no dia-a-dia e na maturação da vida? Será pedagógico e necessário o silêncio? Como podemos criar condições para que haja (ou possa haver) silêncio? O silêncio será, efetivamente, uma linguagem de vida? Haverá diferença entre ‘estar calado’ e ‘sentir o silêncio’? Como entender a distinção entre cultivar o silêncio e ter de estar silenciado? O silêncio exterior não favorece e incentiva o silêncio interior na pessoa? Haverá técnicas para conseguir estar em silêncio, estando só ou com outras pessoas?

 1. Por estes dias o treinador de uma equipa de futebol recusou-se a falar porque o som ambiente do estádio – agora vazio e sem público assistente – estava, segundo ele, demasiado alto, não deixando ouvir nem falar em condições mínimas. Parece ser, hoje, uma corrente de comportamento essa em que as pessoas não conseguem estar num mínimo de silêncio, ao menos exterior: uma tal chinfrineira musical invade tudo e todos, quase questionando quem assim não vive se será normal…

 2. Há desportos e espetáculos onde o silêncio é como que exigido aos que assistem, tal é a concentração subjacente aos intervenientes. Nalguns casos, se houver prevaricadores barulhentos, são como que silenciados pelo resto dos espetadores, tornados, deste modo, como que participantes no espetáculo ou na ação desportiva. Claro que após o cumprimento da façanha – uma boa jogada, uma pega bem-sucedida, uma cantiga melhor executada – se dará uma explosão de aplauso, mas foi preciso guardar silêncio e estar calado para que isso viesse a acontecer…  

 3. Dizem alguns entendidos na matéria que o silêncio com conta-peso-e-medida equilibra a pessoa e fá-la amadurecer. Até as conversas entre as pessoas precisam de espaços de silêncio. Também neste aspeto o que vemos nas televisões e não só – mesmo no dito parlamento – é uma balbúrdia tal de vozes e de conversas que ninguém sabe quem diz o quê. Casos há em que gritaria se torna ofensiva a quem segue os pretensos debates. Temos vindo a crescer na malcriadez que nem feira ou campo de batalha. O pobre silêncio foi exorcizado do convívio social e mesmo do trato político, profissional ou mesmo cultural…

 4. Com o afã das transmissões televisivas, radiofónicas ou de redes sociais das celebrações religiosas foi decrescendo o tempo de silêncio nas mesmas, quase havendo medo dos espaços vazios de não-barulho. Ora, a qualidade de uma celebração não se avalia pelo muito que se diz ou canta, mas pelo que se vive em intensidade, interioridade e contemplação. Urge, por isso, criar as condições para que as celebrações – digo-o do ponto de vista católico – tenham qualidade de silêncio e não seja preciso entreter o não-falar com uma musiquinha de fundo, quando devia ser um espaço preenchido de encontro com Deus em comunhão com os irmãos…pela assembleia reunida. Claro que é preciso saber criar as condições para que haja um silêncio celebrante, desde o tom de voz até às palavras ditas ou caladas, passando pelo contributo musical e de educação de todos para o verdadeiro silêncio…  

 5. A Semana Santa é, por excelência, o tempo do grande silêncio: as palavras calam-se diante do grande mistério de Jesus connosco e para nós. O próprio Jesus emerge em todo o processo da Sua paixão como um homem de silêncio. Até Deus se cala. Assumindo uma dinâmica narrativa, os textos da paixão-morte-ressurreição de Jesus são a maior lição de silêncio em toda a história da Humanidade, reduzindo ao mínimo as palavras e perpassando um silêncio profundo, que não é de morte, mas semente de Vida.

As celebrações dos diversos tempos da Semana Santa são um convite permanente ao silêncio, não vazio de palavras, mas prenhe de contemplação… que há de ser erupção de alegria em domingo de Páscoa. Com efeito, precisamos de viver a intensidade do silêncio no lava-pés, da narrativa joanina da Paixão, na adoração da Cruz – reduzida ao essencial – e do longo silêncio de sábado santo para que a vigília pascal seja de luz, de cor e de som divinos porque humanizados em Jesus, por Jesus e para Jesus vivo e ressuscitado!    

 

António Sílvio Couto

sábado, 27 de março de 2021

Abandono

 


Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Esta frase – grito, oração, súplica ou pedido – perpassa a liturgia do Domingo de Ramos na paixão do Senhor.

Extraída do Salmo 22,2 esta citação aparece-nos na leitura do Evangelho segundo São Marcos 15,34.

Seguindo a língua aramaica – talvez a expressão linguística materna de Jesus: Eloí, Eloí, lemá sabachtáni? – encontrámos nas reações a esta súplica algo que nos pode confundir: Jesus clama pelo Senhor seu Deus (Elohim) e os que O escutam julgam que Ele está a chamar por Elias… uma cacofonia que seria jocosa, se o momento não fosse grave e sério… Até na cruz – vivência suprema de Jesus – não O compreenderam nem na linguagem e tão pouco na sua expressão orante…intemporal e dos nossos dias. 

 = Perante as várias situações – pessoais, familiares, sociais, eclesiais ou mesmo culturais – de ‘abandono’ vamos encetar uma breve reflexão sobre este tema… naquilo que ele tem de psicológico, de físico, de espiritual, de existencial, tanto na dimensão percebida quanto nos aspetos mais recônditos e nem sempre percetíveis ou verbalizáveis.

Neste tempo de pandemia tornou-se algo atroz ver a referência mais incisiva aos ‘animais abandonados’ do que às pessoas em abandono. Neste tempo pandémico emergiram tantas situações de pessoas mais velhas votadas ao abandono, tanto de familiares como das estruturas do Estado – autoapelidado – de ‘social, em que os mais frágeis e fragilizados se tornaram quase um empecilho para o designado ‘serviço nacional de saúde’. Neste tempo de pandemia surgiram questões, problemas e casos onde o abandono capcioso estrutural deixou de ser escondido nem os atropelos puderam mais ser encobertos.

Dá a impressão que abandono rima com ‘sem dono’, isto é, quase ninguém assume a sua responsabilidade, num primeiro aspeto tendo em conta a dimensão pessoal, pois, embora não sejamos controladores uns dos outros, podemos e devemos ser cuidadores atentos, próximos e vigilantes. Noutra instância de relacionamento poderemos considerar o potencial abandono numa perspetiva mais egoísta, na medida em que saberemos mais de quem está longe do que do nosso vizinho…até da porta do andar ao lado… Este ‘sem dono’ parece crescer, nisso a que agora chamam ‘distância sanitária’, pois o outro é (ou pode ser) um potencial contagiado e, por isso, contagiador do vírus para comigo…Vai levar bastante tempo a recuperarmos a confiança mútua… até não deixarmos o outro abandonado à sua sorte!

 = Confesso que em meados de janeiro passado tive a sensação de um abandono trucidante: parece que Deus nos tinha abandonado à nossa irremediável sorte… as filas de ambulâncias às portas das urgências – esse era o facto, gerador de pânico e medo – 303 mortos num só dia e ainda com dez mil infetados no penúltimo dia de janeiro… Por onde andava Deus? Como líamos estes dados dramáticos? Quem nos guiava na sua interpretação? Ainda haveria capacidade de se interrogar ou só de se defender?

Um tanto à deriva ou sem nexo de causalidade, os responsáveis eclesiais antecipavam-se às autoridades a fecharem os templos e a confinar os crentes às celebrações em rede virtual. Quase nos ajudávamos a gerir o abandono da prática da fé e da presença à eucaristia dominical. Por diversas formas era percetível que se palpava o abandono por medo, mas também por negligência e até por cobardia. Casos houve em que os funerais eram feitos sem acompanhamento religioso, pois os clérigos hibernaram senão na teoria ao menos na prática…pelo refúgio e salvaguarda da pele.

Tornou-se visível o abandono para com quem estava de luto. De formas algo subtis as famílias eram deixadas a um abandono que se vai pagar caro, tanto na celebração da fé (quem sufragará os seus defuntos se não houve coragem de estar na hora do funeral) como na vivência da esperança (deixada à deriva e sem conteúdo), pois a caridade tornou-se mais de esmolas para comer do que como virtude em ato contínuo de compromisso cristão.

Agora que celebramos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Jesus atendamos ao Seu grito de abandono, na Cruz e vejamos os abandonados que precisam da nossa (comunitária) atenção!       

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 24 de março de 2021

Semana santa – das igrejas vazias ao (possível) vazio da Igreja?

 


De muitas e variadas formas se tem procurado interpretar o significado mais profundo do esvaziamento das igrejas (templos e comunidades), particularmente neste tempo de pandemia… antes, durante e depois. Há estudos e inquietações – o recente livro de Tomás Halík, ‘O tempo das igrejas vazias’ é um expoente – à mistura com conjeturas e insinuações. Dependendo da perspetiva de análise poderemos encontrar leituras, propostas e até catalogações nas respostas que nos possam convir, deixando a ideia de que teremos uma solução sem enfrentarmos o verdadeiro problema.

De que adianta tentar encontrar culpados no esvaziamento da cristandade? Não fazemos todos parte do problema? Por que acusar, se estamos também na linha de mira dos acusadores? Os mais velhos serão mais culpados? E os mais novos não contribuíram para o seu desânimo? Certas teses inflamadas serão exequíveis ou somente servem para cocegar os cotovelos em estudo? Escorraçadas as pessoas ainda haverá rituais?

Recordo dois episódios. Um padre novo chegou a uma igreja e viu uma pedra no meio do templo. Logo a quis retirar, pois destoava da dignidade do espaço sagrado ao que antecessor o aconselhou a perguntar primeiro as razões para o facto ainda acontecer e não a iniciar a sua remoção… Haveria causas!

Dizia-me um padre em terras de emigração que encontrou uma ‘missão’ com muita gente, embora ainda algo tradicional, até nos cânticos. O antecessor esteve lá duas décadas, nunca aprendeu a língua, mas conseguiu que as pessoas não se afastassem…foi aguentando a fé.

Ora, nesta proximidade ao celebração do mistério pascal da paixão-morte-ressurreição do Senhor, veio-me à lembrança sugerir alguns passos nesta caminhada de passarmos da contínua aferição do ’eu’ ao ‘nós’ e na descoberta do ‘nós’ no ‘eu’.

1. Silêncio – antes de mais precisamos de fazer silêncio dentro e fora, pois a voz de Deus é de subtil comunicação nesta chinfrineira de sons, desafios ou superficialidades. Ter a coragem de se deixar confrontar nessa subtileza de mergulharmos no rio de água viva que nos percorre intensamente;

2. Escuta – desta nascerá a capacidade de perceber para onde vamos ou como não demos continuar, discernindo as múltiplas vozes e seduções. Mais do que falar é urgente saber ouvir, num exercício contínuo crescente e nunca acabado;

3. Tempo com qualidade – quando não queremos enfrentar-nos, engenhosamente, arranjamos desculpas e a falta de tempo é a mais recorrente. Ora, precisamos de ter tempo para nós mesmos, para Deus e para os outros, sem distrações nem falsas comunicações. A pressa é tantas vezes inimiga da qualidade e mesmo da eficiência;

4. Prioridade às pessoas – numa época de velocidade, onde os ‘gostos’ ou postes facebokianos contam mais do que as amizades de partilha, corremos o risco de nos iludirmos com as conquistas na nossa habilidade e não no amadurecimento sereno pelo estudo e na reflexão com as pessoas concretas e simples. Seremos capazes de desligar totalmente do telemóvel para estarmos só com as pessoas e para elas?

5. Querer aprender – pelo confronto sadio e sereno, pela partilha despretensiosa e humilde, pela sábia humildade de nada ensinar e com todos aprender, poderemos criar uma abertura à diferença, sabendo cada um quem é e respeitando o outro na sua identidade. Quando alguns pararam no tempo e acusam a Igreja de estar parada, teremos a coragem de convidar a virem ver como estamos, sem esconder o que somos?

6. Caminhar com os outros – agora que nos coartaram a possibilidade de termos gestos de afeição, torna-se ainda mais necessário saber ler no olhar e caminhar sem medo com os outros, mesmo os mascarados. Já não há mais distinção entre católicos e outros cristãos, mas entre crentes e descrentes, ateus ou indiferentes.  

7. Falar com sinceridade – o pior que nos podia acontecer era descremos da palavra alheia, desconfiando uns dos outros ou acusando-nos mutuamente. Todos precisamos de crescer na obediência à Palavra de Deus, para que haja verdadeira conversão… de vida e para a vida.

Pior do que constatar as igrejas vazias será percebermos o vazio da Igreja. De facto, a Igreja somos nós, tenhamos ou não a possibilidade de nos reunirmos presencialmente. Não deixemos que o vazio nos invada nem nos tornemos testemunhas de um Cristo sem rosto nem voz. Hoje somos a Sua presença, amando-nos e respeitando-nos, sem acusações nem lamúrias. O vazio não é de Deus…

 

António Sílvio Couto