Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 16 de março de 2020

Comunhão espiritual…em estado de alerta


Com as medidas higiene-sanitárias em curso em razão do coronavírus ‘covid-19’ temos de reaprender vários aspetos da nossa vida privada e em público, que considerávamos insuspeitamente adquiridos. Temos de saber estar uns com os outros, defendendo-nos e sendo defendidos. Temos de colocar a nossa vida em maior intercomunhão, pois de cada um de nós depende a segurança dos outros e deles está cifrado o que podemos dar e receber.

A suspensão dos atos religiosos – entre os quais a missa – com a presença de pessoas – não é de público, como alguns dão a entender, mas da assembleia de irmãos, que por se quererem bem, até aceitam alguns sacrifícios de não participarem na comunidade presencial.

De entre as temáticas que podem ser úteis abordar vamos explicar o que é a ‘comunhão espiritual’, qual o seu significado e como participar nela…em maré de crise, embora no tempo da Quaresma.

«Nem todos os fieis presentes na Missa estão em condições de receber a Eucaristia durante a Missa, mas todos são capazes de viver o que é chamado de “comunhão espiritual”, no sentido de um ato de adoração, unindo-se com o movimento de doação que está sendo celebrado na Missa. A esse respeito, Santa Teresa d’ Ávila escreveu: “Quando você não receber a comunhão e não assistir à Missa, você pode fazer uma comunhão espiritual, que é uma prática muito benéfica; por ela, o amor de Deus será marcado de forma impressionante em ti”. Nós estamos todos, de alguma forma, unidos pelo Espírito Santo. Aqueles incapazes de receber a comunhão podem declarar, nos seus corações, o desejo sincero de recebê-la e unirem-se a si mesmo e seus sofrimentos, naquele momento, com o sacrifício de Jesus Cristo. Nos últimos anos, o convite é constantemente feito àqueles que não podem receber a comunhão sacramental - por exemplo, as crianças antes de sua Primeira Comunhão e adultos que não são católicos - para receberem uma “bênção” no momento da Comunhão» - Pontifício Comité para os congressos eucarísticos internacionais, ‘A eucaristia: comunhão com Cristo e entre nós’, n.º 121.
Embora nesta citação estejam vários aspetos de incidência naquilo que costumamos designar de ‘comunhão’ eucarística, vamos centrar-nos mais especificamente na ‘comunhão espiritual’.
A ‘comunhão espiritual’ consiste num desejo ardente de receber Jesus sacramentalmente e num amoroso encontro, como se fosse recebido realmente. Esta devoção é um meio eficaz para chegar à perfeição e ao mesmo tempo é uma devoção fácíl, porque pode ser praticada todos os dias, por todos, e quantas vezes se quiser, sem ser visto ou observado por pessoa alguma. Podemos e devemos praticar a ‘comunhão espiritual’ com frequência, na oração mental, na visita ao Santíssimo Sacramento e na presença na Missa à hora da comunhão do sacerdote…sobretudo para quem estiver, pelas razões eclesiais conhecidas e aceites, impedido de receber a comunhão no pão eucarístico. 

= Agora que a maior parte dos fiéis está a viver esta provação da privação da comunhão sacramental, tanto no contexto da eucaristia celebrada, como fora dela, talvez ser-nos-á útil para a nossa formação e caminhada espiritual sermos melhor esclarecidos desta possibilidade que a nossa fé católica nos dá.

Apresentamos uma sugestão para a vivência da ‘comunhão espiritual’:

- Faz, primeiramente, um ato de fé, crendo firmemente que na Eucaristia está o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Jesus Cristo, tão vivo como está no céu;
- Faz também um ato de amor, unido ao arrependimento dos teus pecados;
- Faz um ato de desejo, convidando Jesus Cristo a entrar na tua condição espiritual, alma e espírito;
- Dá graças ao Senhor por tudo quanto tens recebido de graça e de bênção na tua vida...antes, agora e no futuro.
- Permanece em silêncio contemplativo, unindo-te a todos os santos e anjos no Céu, especialmente a Nossa Senhora...

Eis uma sugestão. Poderemos voltar ao tema, se tal for útil e se justificar.

 

António Sílvio Couto

domingo, 15 de março de 2020

Onde está Deus nesta crise…do ‘covid-19’?


Tal como noutros momentos/acontecimentos mais difíceis da história da Humanidade, assim agora se pode/deve perguntar: onde está Deus? O que é que Ele nos está a querer dizer? Que sinais encontramos de que Ele está em tudo isto? Qual o contributo humano para esta situação generalizada de crise? Será isto resultado de uma tendência crescente de homem/mulher hodiernos terem posto Deus fora da sua existência? Não andaremos a viver, cada vez mais, segundo o princípio ‘como se Deus não existisse’? 

- Partindo do pressuposto de que nada acontece fora de Deus, temos de questionar-nos uns aos outros sobre tudo isto que está a acontecer… desde o que conseguimos enxergar até àquilo mais profundo que não temos capacidade de o verificar. Efetivamente, em menos de três meses – as primeiras notícias em Whuan, na China, datam de finais de 2019 – generalizou-se esta pandemia… cujos números de infetados, de colocados em vigilância (quarentena ou outro modelo) e até de falecidos estão em contínua desatualização… Tudo isto, num ápice mergulhou-nos nesse tal ambiente a roçar o tétrico e quase incontrolável, tanto pelas autoridades, quanto pelas pessoas mais ou menos conscientes daquilo que está em causa: a saúde pública e talvez a sobrevivência privada. 

- Perante as medidas tomadas para tentar controlar a epidemia pelo ‘covid-19’ poderemos ficar descansados? Haverá proporção entre um certo cuidado coletivo e algum desleixo pessoal? Já teremos todos interiorizado que podemos ser mais difusores do vírus do que recetadores do mesmo?

Há sinais evidentes de que o egoísmo é hoje a melhor forma de expressão religiosa, mesmos daqueles e para aqueles que se julgam cristãos. Com que facilidade se resguardam as pessoas, quando lhes parece estar em causa o seu interesse mais recôndito. Nalguns casos podemos perceber que, em matéria de direitos, andamos ainda muito longe da assunção completa dos deveres.

Um tanto à força as pessoas vão-se recolhendo em casa, atenuando os focos de difusão da doença. Tem estado a ser necessário recorrer â ameaça – e coimas e até prisão – para que as ruas fiquem libertas de pessoas, isto já para não falar das praias para onde convergiram, recentemente, os alunos dispensados das escolas, tanto médias como do ensino superior. Em certas circunstâncias as autarquias fecharam os parques de estacionamento próximos das praias para condicionarem os utentes… Isto parece uma brincadeira de gente pequena interpretada por ‘gente’ grande…sem qualidade cívica.

Soa um tanto a algo pidesco a indicação de não-permitir que mais de cinco pessoas possam estar juntas, na medida em que isso pode ser considerado um perigo para a propagação do vírus… No entanto, para aferirmos do estado de inconsciência coletiva a que termos chegado podemos ainda aduzir o açambarcamento de provisões a partir dos espaços de venda. Ainda não foi bem explicado o esgotamento em concreto do papel higiénico, dado que podemos encontrar outros recursos para substituir a sua função. 

= Ao nível da vivência da fé – particularmente na expressão católica – vimos que foram desenvolvidos vários recursos para que os ‘praticantes’ continuem, ultrapassando as condicionantes exteriores. Sugestões de missas pela internet (facebook, websites, youtube), pela rádio ou recorrendo à televisão (aqui em âmbito nacional). Apesar das dificuldades temos de encontrar soluções para que a nossa fé não seja menos bem alimentada em tempo de Quaresma e em dia de domingo. Certamente já reparamos que esta crise se desencadeou num tempo considerado forte da preparação para a Páscoa. Os mais diversos meios tradicionais da Quaresma estão coartados, pelo menos na sua expressão comunitária presencial. Temos de ser inventivos para fazermos deste tempo, já propício ao recolhimento, uma nova etapa de nos recentramos no essencial, de facultarmos mais tempo para Deus e de maior atenção aos outros, atendendo à sua ausência física que não psicológica e espiritual. Talvez seja oportuno que, em família ou pessoalmente, tenhamos um horário pré-estabelecido de oração – onde se pode incluir o rosário, a liturgia das horas, a via-sacra ou a meditação dos textos litúrgicos de cada dia – bem como podemos assistir a alguma celebração eucarística através a internet/televisão. Será sempre de boa conduta reaprendermos a ‘comunhão espiritual’ fora da missa…    

 

António Sílvio Couto

sábado, 14 de março de 2020

Para uma interpretação da parábola de Lc 15,11-132


11 Jesus continuou: «Um homem tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: "Pai, dá-me a parte da herança que me cabe". E o pai dividiu os bens entre eles. 13 Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E aí esbanjou tudo numa vida desenfreada. 14 Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome nessa região e ele começou a passar necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para os seus campos cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a vianda que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam. 17 Então, caindo em si, disse: "Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui a morrer de fome... 18 Vou levantar-me, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; 19 já não mereço que me chamem teu filho. Trata-me como um dos teus empregados". 20 Então levantou-se e foi ter com o pai. Quando ainda estava longe, o pai avistou-o e teve compaixão. Correu ao seu encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. 21 Então o filho disse: "Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho". 22 Mas o pai disse aos empregados: "Depressa, trazei a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. 23 Pegai no novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado". E começaram a festa. 25 O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava a acontecer. 27 O criado respondeu: "É o teu irmão que voltou. E teu pai, porque o recuperou são e salvo, matou o novilho gordo". 28 Então, o irmão ficou com raiva e não queria entrar. O pai saiu e insistiu com ele. 29 Mas ele respondeu ao pai: "Eu trabalho para ti há tantos anos, nunca desobedeci a nenhuma ordem tua; e nunca me deste um cabrito para eu festejar com os meus amigos. 30 Quando chegou esse teu filho, que devorou os teus bens com prostitutas, matas o novilho gordo!" 31 Então o pai disse-lhe: "Filho, estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegra-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou a viver, estava morto e foi encontrado (Lc 15, 11-32).

 

Perigosa e indevidamente se tem apelidado esta parábola ‘do filho pródigo’, quando deveria ser, no mínimo dos ‘dois filhos’, mas por antonomásia do ‘Pai da misericórdia’, pois é Ele quem sofre e vai ao encontro de cada um dos filhos…rebeldes e pecadores à sua maneira, mesmo sem disso se terem apercebido.

De forma sucinta vejamos os intervenientes nesta parábola: filho mais novo, pai e filho mais velho. O pai funciona como o eixo de toda a história, na medida em que sem se aperceberem os dois filhos como que estavam perdidos, um há de reconhecê-lo, o outro com dificuldade parece aceitá-lo…não esqueçamos que cada dos filhos como que tipifica um ‘povo’ – o filho mais velho, os fariseus e doutores da lei, que murmuravam contra Jesus (cf. 15,2), julgando-O preconceituosamente, enquanto o filho mais novo simbolizava os cobradores de impostos e os pecadores que se aproximavam de Jesus (cf. 15,1) para O escutarem.

O texto divide-se em duas partes: vv. 11-24 e vv. 25-32…terminando cada uma delas com incisos relativos às atitudes do pai.

* Primeira parte (vv. 11-24): a rebeldia do filho mais novo

Depois de pedir a parte da herança que lhe tocava, o filho mais novo vai à sua vida… fazendo o que lhe apetece, gastando, longe da casa do pai sem tutela nem peias, a fortuna numa vida dissoluta. Parece que é livre porque faz o quer, num querer mal gerido e imaturo. Caiu na fossa, precisando de se submeter a algo que repugnava a qualquer judeu, tratar de porcos, um animal impuro (cf. Lv 11,7), mas nem o alimento deles lhe era concedido – vv.14-15. Ele que se pretendia livre, torna-se nitidamente escravo…até de si mesmo. Então ‘caiu em si’, recordando a casa do pai, com a abundância de pão que lhe faltava, a sorte dos empregados do pai e nasce nele o desejo de regressar, embora arquitetando um discurso não de mera desculpa mas de reconhecimento dos erros que cometeu – vv. 18-19 – alicerçado na expressão: ‘pai, pequei contra Deus e contra ti’. Eis a maior graça: reconhecer-se pecador e necessitado do perdão do pai. ‘Então, levantou-se e foi ter com o pai’. Não adianta reconhecer-se pecador nem criar discursos de boas intenções, é preciso partir de onde se está para viver algo de novo: aceitar-se como se é e esperar a misericórdia do Pai…

= Atitude do pai para com o filho mais novo (vv. 20b-24)

Entra, então, em cena o pai no trato com o filho mais novo. ‘Quando ainda estava longe, o pai avistou-o e teve compaixão. Correu ao seu encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos’ (v. 20). Mais do que a pressa em chegar do filho, o pai revela a expetativa em o ver regressar, antecipando sentimentos, emoções e, sobretudo, deixando extravasar a compaixão contida em todo o tempo em que ele esteve fora, mas não longe do coração. Efetivamente o pai encurta o caminho de regresso, deixando que o filho exprima alguns aspetos – ‘"Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho’ – mas não todos, particularmente esse de ser equiparado aos empregados, não é que não o merecesse…

As atitudes do pai são desconcertantes para quem veja isto numa lógica humana. Os gestos são de festa: beijos, túnica nova (vestido da graça), anel no dedo e sandálias nos pés, isto é, recupera a dignidade de homem livre porque perdoado, reintegrado na família e aceite no convívio do qual se excluíra por rebeldia e alguma imaturidade. E a festa teve início com abundância de comida, um banquete…pela alegria do regresso do filho ‘são e salvo’.

 

* Segunda parte (vv. 25-32): a animosidade do filho mais velho

Regressado do campo – lugar de trabalho e talvez de alienação do tempo – o filho mais velho é surpreendido pela festa na casa do pai. Algo de estranho se passaria e ele vai inquirir – ‘Então chamou um dos criados e perguntou o que estava a acontecer’ (v. 26) – dando a entender que a casa estava de luto pela ausência do irmão, mas ele ter-se-ia habituado a esse ambiente…sem música nem danças, irritando-se com isso. Informado pelo empregado – talvez o mesmo que ajudou o irmão regressado a ser revestido dos sinais de festa – sente-se incomodado, negando-se a entrar e a participar na festa do regresso do irmão. Uma vida de trabalho sem reconhecimento do patrão/pai. Sim, o pai para ele mais parece um patrão de quem ele era bom empregado. Podemos perceber que o filho mais velho estava azedo, rezingão e denotaria alguma tristeza de vida…num coração ferido, insensível e julgador, como eram os fariseus e doutores da Lei.

= A atitude do pai para com o filho mais velho (vv. 28b-32)

Novamente é o pai quem dá o passo de ir ao encontro. ‘O pai saiu e insistiu com ele’ (v. 28b). Os argumentos do filho mais velho são os de uma espécie de fatura de quem andava a juntar as peças para, um dia, descarregá-las todas, disparando nas várias direções: para com o pai considera que há alguma injustiça na medida em que o que tem feito não é reconhecido devidamente, cumpridor sente-se coartado nas pretensões mais normais, até de fazer uma festa com os seus amigos…certinhos, segundo a Lei, mas frios como ele; quanto ao filho mais novo (irmão), a quem ele chama de ‘teu filho’, acusando-o de ser um dissoluto e esbanjador da fortuna… A esse fazes festa, comigo não me tratas corretamente, poderemos considerar das palavras do irmão mais velho. Por seu turno, procurando fazê-lo tomar parte na festa, os argumentos do pai, são mais simples: há comunhão de bens entre ele (pai) e o filho – cumpridor e mais ou menos fiel ao menos na letra da Lei – que não saiu de casa, mas sobretudo ele tem de aceitar o seu irmão que regressou ao seio da família para recomeçarem uma nova etapa…todos.

Nada sabemos da posterior reação do filho mais velho…O caminho foi percorrido por ambos os irmãos, onde cada um de nós se pode e deve rever atentamente…num encontro cada vez mais aprofundado com o Pai da misericórdia.

Quem não se revê nalguma das atitudes do filho mais novo, apelidado de pródigo, ou do filho mais velho?

 

António Sílvio Couto

 

 

quinta-feira, 12 de março de 2020

Reaprender a relacionar-se…em público


As mais recentes mudanças comportamentais – desenvolvidas em razão da já designada pandemia do coronavírus ‘covid-19’ – vieram trazer à luz do dia a necessidade de reaprendermos a relacionar-nos uns com os outros… desde as questões mais vulgares até às mais complexas e complicadas.

Gestos e atitudes considerados tão simples, naturais e socialmente aceitáveis têm de ser revistos, modificados e acertados para que não corramos riscos de contágio entre as pessoas e no contato com as coisas de maior utilização.

Às notícias algo alarmistas vemos aparecerem comportamentos, no mínimo, irresponsáveis, como esses de fecharem escolas e outros estabelecimentos de ensino, para que não haja contágio, e, na sua maioria, os mesmos intervenientes irem para a praia sem qualquer cuidado, que não seja divertirem-se sem controlo nem condicionamentos… percetíveis.

O problema parece configurar uma espécie de psicose coletiva, onde vemos surgirem diversos e esquisitos alaridos, sem que isso possa vir a criar uma mudança de atitude de todos e de cada um. Já noutros momentos apareceram uns mais fundamentalistas quanto as medidas mais restritivas possível, mas sem consequências significativas e, com os mesmos ingredientes, vermos outros tantos sem o cuidado imprescindível, como se estivessem imunes a todos os riscos, mas com atitudes a roçarem a irresponsabilidade. 

= Numa época marcada por algum egocentrismo e endeusamento do eu, este surto de coronavírus ‘covid-19’ lançou uma espécie de pânico sobre o modo como nos vínhamos a relacionar…sobretudo em matéria de saudação/cumprimentos. De facto, como que se têm vindo a vulgarizar os modos como maioria das pessoas vive em estado social, na medida em que os mais básicos cumprimentos e saudações se têm estado a revestir de sinais de afeição, quando isso nem sempre corresponde – será juízo ou preconceito? – à verdade, isto é, certas beijoquices, abraçamentos e apertos de mão, que deveriam significar afeição, mais não passam de jeitos rotineiros e sem conteúdo…até nas celebrações religiosas. Como que se vulgarizaram sinais algo exagerados, senão no conteúdo ao menos na forma, como referiu a responsável do setor da saúde pública portuguesa, no início desta irremediável confusão.

Por ocasião desta crise pandémica foram surgindo alternativas aos conhecidos modos de saudação. Um tanto esquisito apareceu o toque de cotovelo a cotovelo, outros introduziram o aceno com sorriso e, mais recentemente, o ‘wuhanshake’, isto é, o cumprimentar-se com os pés…batendo ao de leve uns nos outros.

De uma coisa parece que deveríamos colher a lição: não podemos difundir o contágio só porque nos dá mais conveniência., continuando a usar gestos, sinais e atitudes que podem ser adequadas ao bom senso coletivo. 

= Embora ainda longe do processo, que esta onda do coronavírus ‘covid-19’ nos tem feito atravessa, urge reeducar para a cidadania, pois se há algum foco de contaminação não podemos continuar a comportar-nos como se isso fosse só com os outros e não nos envolvesse a todos e a cada um.

Certos exageros ainda hão de envergonhar quem os patrocinou. Alguns dos fazedores do medo pagarão pelo praticado. Muitos dos irresponsáveis deveriam ser culpabilizados pelos erros, negligências e tropelias.

Estamos num mundo interdependente em tudo…até na asneira!    

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 10 de março de 2020

Mães solteiras…heroínas não-assumidas?


Mais de metade das crianças nascidas, em 2018, são filhas de mães solteiras: das cerca de 87 mil crianças que viram a luz, mais de 48 mil foram de mães solteiras.

Segundo dados recentes (2019) e oficiais (INE), as famílias monoparentais – na sua maioria assumidas por mulheres com filhos a cargo – ultrapassam, em Portugal, os 400 mil casos de constituição familiar (459.344), enquanto o tipo de agregado ‘casal sem filhos’ atinge mais de um milhão de situações (1.030.116) e o item ‘casal com filhos’ é de quase um milhão e meio de casos (1.401.622) … isto já para não ter em conta as pessoas que vivem sós: mais de novecentos mil (934.108).

É claro e notório que a configuração da família no nosso país – e em toda a Europa – está a mudar acentuadamente, percebendo-se que a instituição família é, hoje, alvo de todos e dos mais insidiosos ataques, não só na teoria como na prática, numa ação quase concertada, que faz estremecer de medo e de preocupação sobre o nosso futuro coletivo.

Percebe-se facilmente que a estruturação da sociedade não tem na devida conta a família, parecendo esta mais um inimigo do que um parceiro e/ou um elemento estruturante da própria sociedade. Desde a organização do tempo até à qualidade com que este é gerido, tudo parece correr apressado. Outros fatores se sobrepõem à família: o emprego/trabalho, a habitação (desde o custo das casas até ao arrendamento ou mesmo a sua dimensão), o dinheiro (a ganhar, a gastar e talvez sem poupar), uma certa vida social, numa palavra, como dizem alguns entendidos: é caro ser e ter família…sem viver na nostalgia nem na ansiedade. 

= Efetiva e afetivamente todos fazemos parte de uma família, que nos deu o ser, o estar e, sobretudo, o saber estar, sendo. E aqui entram muitos sinais que deveriam questionar a nossa sociedade, pois sabemos que uma pessoa destruturada familiarmente pode tornar-se um foco de conflitualidade ou mesmo destabilização em potência. Torna-se, de facto, preocupante que as pessoas tenham cada vez menos tempo umas para as outras e que as relações efetivo-emocionais sejam, de algum modo, menosprezadas, senão na teoria ao menos na prática. Com indisfarçável proposta se vem criando as condições para que as pessoas não tomem as refeições em comum, promovendo antes a sua toma fora de casa, com os gastos económicos – dados conhecidos dizem que os portugueses gastam 35 milhões diários nas refeições extrafamiliares – e a diluição dos laços afetivos, humanos e até gastronómicos familiares.        

É algo visível que as pessoas (homem e mulher) começaram a assumir laços com estabilidade – antes dizia-se pelo casamento (com ou sem vínculo de matrimónio) – cada vez mais tarde na idade. Em cinquenta anos passou-se, em média, dos vinte e cinco anos para os atuais trinta e três, fazendo-o sobretudo no registo civil; naquela data teriam, em média três filhos, agora quedam-se por um ou nenhum. A esta leitura deve acrescentar-se o facto de o recurso ao divórcio ter aumentado em mais de cinquenta por cento em meio século. Os homens são quem mais recompõem a sua vida familiar… casando-se. Desde 1995 que mais de trezentas mil crianças já tinham meios-irmãos, quando nasceram.

De referir ainda que, na última década, foram celebrados mais de quatro mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo e que, desde 2016, estes mesmos ‘pares’ podem adotar crianças e jovens.

Além de tudo isto é notório que um número crescente de pessoas, de qualquer dos sexos, nem vive em vínculo de estabilidade legal, quedando-se pelo estado ‘de facto’, embora usufruindo idênticos direitos, quando não quiseram abraçar os deveres… Serão sinais da volatilidade das coisas dos nossos dias?   

= Causas e consequências do relacionamento entre as pessoas continuam a ser vividos num quadro humano onde a lei precisa de não feita a gosto dos intervenientes, mas onde será preciso que as diversas partes saibam quem são e como se devem relacionar de forma adulta e amadurecida. Se a diminuição do número de casamentos se julgava ter acrescido a qualidade nem sempre isso se verifica, antes pelo contrário: a qualidade/maturidade parecem andar em proporção desencontrada em tantos dos episódios do dia-a-dia.

Como dizia alguém com saber e experiência: um bom casamento começa a ser preparado duas gerações antes de ele se vir a concretizar, isto é, nos netos se alicerça a fidelidade dos avós e vice-versa.   

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 5 de março de 2020

‘Missão país’: uma nova forma de evangelizar?


De 22 de fevereiro a 1 de março – semana do carnaval – decorreu, na Moita, mais um tempo de ‘Missão país’, onde cerca de sessenta jovens do ISCTE de Lisboa andaram a ‘missionar’ no espaço da paróquia da Moita.

Esta foi o segundo de três anos em que a ‘Missão país’ esteve na Moita. No ano passado tiveram como principal base Sarilhos Pequenos – uma das localidades da paróquia – e este ano centraram mais a sua atenção no tecido urbano da Moita, tendo, tanto este ano como já no ano passado, estado alguns (quase um terço) dos jovens também no bairro da Fonte da Prata, localizado na freguesia de Alhos Vedros.

Organizados em pequenos grupos, os jovens percorreram vários lugares e estiveram em diversos espaços em atitude de evangelização: lares de idosos (do centro paroquial e da santa casa da misericórdia), creche, jardim-de-infância e atividades de tempos livres, ‘Casa dos marcos’ de doenças raras, apoio no estudo, recuperação de casas e ainda no porta-a-porta.

A presença destes jovens da ‘Missão país’ destacava-se ainda por todos envergarem um tshirt cor de tijolo (com a ideia da construção e do barro, onde se tipifica a necessidade de ser moldado por Jesus), estando inscrita a frase-tema das missões deste ano: ‘desce depressa! Eu fico contigo’, tendo por base a passagem bíblica do Zaqueu (Lc 19,1-10).

Ao longo de uma semana foi interessante ver a interação entre estes jovens – uma boa parte veio para a Moita em missão pela primeira vez – e as pessoas que iam encontrando nos diferentes locais de missionação. A sua presença não passou desapercebida no momento da celebração da missa na igreja paroquial.

Como pontos significativos da semana de ‘Missão país’ deste ano podem ser referidos: o jantar com famílias, na quinta-feira à noite, onde dois ou três foram recebidos por famílias previamente inscritas, criando laços de proximidade e de partilha; a vivência da via-sacra, na sexta-feira, com o setor mais jovem da paróquia, onde se incluíram também os escuteiros; a apresentação do teatro, preparado por uma equipa ao longo de toda a semana, e no qual foram retratados pormenores da vivência deles e da sua interação com as populações.  

= Que há de diferente neste projeto da ‘Missão país’? Quem envolve e se deixa envolver? Haverá alguma espiritualidade subjacente a este projeto? Onde têm decorrido as ações de evangelização da ‘Missão país’? Que futuro pode ter a ‘Missão país’ na evangelização dos jovens?

Estas possíveis perguntas colocam-nos perante quem faz parte da ‘Missão país’. Desde logo o campo de recrutamento e de mobilização está nas faculdades das diferentes universidades e estabelecimentos de ensino superior em Portugal. Desde o seu início em 2003 foi crescendo a vontade de fazer do espaço de estudo uma oportunidade de evangelização, falando de Jesus em missão. Desde aquela data já se realizaram missões em 121 locais, atingindo mais de três mil estudantes universitários e com quase sessenta missões. Ao observarmos o mapa de Portugal podemos ver que a zona oeste da diocese de Lisboa e parte de Leiria são os campos de maior intervenção, mas também a região do Alentejo está em crescimento. Neste momento há sessenta missões em cinquenta faculdades diferentes, com particular incidência na zona sul (isto é, Lisboa e Évora) e com menor expressão nas regiões norte e centro do país, embora com expansão ao Algarve e Aveiro.

É digno de relevo que cada equipa (comunidade) de missionários leva sempre um pequeno quadro/ícone da ‘Mãe peregrina’ com a forma do Santuário de Schoenstatt, que serve de logotipo e de fundamentação da espiritualidade que conduz estes jovens missionários. Em todos os momentos do seu dia-a-dia os elementos da ‘Missão país’ está presente este pequeno quadro/ícone como que suportando as iniciativas e as atividades de todos e de cada um.

Os três anos de presença de cada ‘Missão país’ em cada localidade são significativos do crescendo de vivência: acolher, transformar e enviar. Isso se verifica em relação a quem é enviado e a quem recebe, deixando sempre a possibilidade de mais e melhor concretização disso que fez surgir e alimenta a ‘Missão país’. Uma palavra importante tem a equipa de jovens que coordena cada semana de missão, sempre acompanhada, ao menos, por um padre, qual ‘diretor espiritual’ dessa semana…

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 2 de março de 2020

Sob a pandemia do medo


Por estes dias temos estado constantemente a receber notícias da evolução do ‘coronavírus covid-19’, desde os infetados, os afetados e as vítimas…num corrupio tal que corremos o risco de confundir as causas com os efeitos e até as consequências com outros sintomas.

Desde dezembro de 2019, quando foi declarado na cidade chinesa de Wuhan, que temos estado a ser invadidos por toda a espécie de suspeitas, conjugadas com repercussões na saúde pública e mesmo na economia. Um progressivo manto de medo se estende sobre uma boa parte dos países, nações e continentes. Nalguns casos nota-se uma quase histeria coletiva, tal parece ser a turbulência que se tem verificado em mais um caso de interdependência de uns para com os outros, apesar do crescente egoísmo.

Em certa comunicação social dá a impressão que os fatores noticiosos têm estado mais sob a tutela do escândalo do que da prevenção correta, sucinta e clara. A forma quase de abutre com que são colocadas certas reportagens no ar deixam algo a desconfiar sobre o real interesse dos canais de informação e nas diferentes plataformas de comunicação, pois parece confundir-se o que se deva saber com aquilo que possa subjugar as pessoas pelo medo…de si mesmas e dos outros.

Um dos casos mais simbólicos neste processo foi o do canalizador num navio de cruzeiro, atracado num porto no Japão: as várias intervenções da mulher, localizado numa cidade à beira-mar, desencadearam a intervenção dos mais altos responsáveis da nação, podendo, em breve, estar de regresso ao país… Um outro membro da tripulação do mesmo cruzeiro não quis sair do anonimato e não sabemos se foi atendido de forma idêntica…

Neste tempo de alta futilidade torna-se fundamental não confundir a árvore com a floresta, evitando derrubar esta só porque uma das árvores está sob suspeita de estar infetada. Efetivamente com que facilidade as pessoas são expostas na sua não-proteção de dados, pois passam a estar sob o escrutínio público quando se encontram em estado de maior debilidade. Ora é exatamente nestas circunstâncias que as pessoas precisam de ser resguardadas na sua dignidade. Com efeito, esta é a marca mais salutar de toda a existência humana e saber conjugar os dados para que a dignidade seja um direito sem interferência abusiva alheia é algo a ter sempre em conta…ao longo de toda a vida. 

= No percurso da história da Humanidade houve alguns momentos de pandemia mais ou menos significativos. Pandemias ligadas à gripe, com as mais célebres: gripe russa (século XIX), gripe espanhola (surgiu em 1918…com mais de 40 milhões de mortos), gripe asiática (surgiu na China em 1957…atingiu todos os países do mundo em dez meses), gripe de Hong Kong (surgiu na China em 1968). Oito grandes pandemias ligadas à cólera. Tivemos ainda a peste negra que, na baixa Idade Média, assolou a Europa, vitimando entre um terço (25 milhões) e metade (75 milhões) da população mundial. No século XVI, sobretudo no México, deu-se a pandemia da varíola e do sarampo, com mais de dois milhões de mortos. Mais recentemente tivemos a pandemia da sida, que, desde 1982, infetou 60 milhões de pessoas em todo o mundo e vitimou 20 milhões de pessoas. Ébola, zika e dengue continuam a poderem tornar-se novos fenómenos de doenças pandémicas.  

= Perante estes dados sobre questões do passado torna-se urgente ser esclarecido, no presente, mas sem entrarmos numa quase psicose alarmista, que interessa mais a quem cultiva o medo e possa fazer dele uma arma contra os outros. Quando a responsável pela área da saúde portuguesa atirou para o ar a conjetura de um milhão de portugueses poderem ser atingidos pelo ‘covid-19’ talvez tenha sido bastante imprudente, particularmente, tendo em conta a propensão para o alarmismo dos nossos conterrâneos.

Urge, por isso, sermos informados com sensatez e com o rigor, que é próprio de quem está ao serviço da verdade e não do sensacionalismo. Apesar de estarmos numa época de acentuado egoísmo precisamos de cultivar mais e melhor a interdependência entre povos, nações e culturas. Seria de muito mau gosto que continuássemos a avaliar o impacto do ‘covid-19’ com os olhos economicistas, devendo, pelo contrário, dar mais atenção, cuidado humanista e humanitário… a todos os envolvidos no processo.           

   

António Sílvio Couto