Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



domingo, 29 de setembro de 2024

Não me diz nada, não sou contra

 


Conta-se, numa terra onde a dedicação aos toiros era de grande relevo, que um visitante perguntou a um residente: aqui, quando há touradas? Ao que o inquirido ripostou: aqui há corridas de toiros, touradas só se for na sua casa! De facto, pelas palavras se pode compreender o conteúdo da comunicação. Com efeito, quem seja ‘aficionado’ (termo usado para referir quem gosta de toiros e de algo de ‘desporto’ a ele ligado) não usa um termo que tem tanto de inoportuno quanto de desadequado, pois a semântica de ‘tourada’ até pode ser depreciativa e mesmo algo confuso nos resultados.

1. Desde já apresento uma declaração de interesses: estive, nos últimos catorze anos, numa localidade onde o ‘culto do toiro’ – uso esta terminologia até com alguma relutância à evolução cultural subjacente – se nota em larga escala. Nos anos em que ali estive (Moita) só fui, no primeiro ano, a uma corrida de toiros em praça, embora visse (ou pudesse ver) da varanda da casa onde morava, as largadas de toiros e que, em cada ano, eram abundantes… Embora o ambiente fosse aquele tal nada me dizia por isso não fazer parte do meu underground cultural, dado ser oriundo de outra parte de Portugal e com outros (diferentes que não melhores nem piores) conceitos culturais. Feita esta observação tentarei ser objetivo para justificar por que digo que nada (ou muito pouco) me sinto agregado àquele espírito e ainda porque não sou totalmente contra certas manifestações taurinas.



2. Sigo nesta apresentação da questão, dados do Instituto Nacional de Estatística apresentados recentemente: os dados referentes à temporada tauromáquica de 2023 contabilizam cerca de 240 mil participantes em espetáculos de tauromaquia em Portugal continental e cerca de dezanove mil na Região Autónoma dos Açores. Segundo a Inspeção Geral das Atividades Culturais, no ano passado, foram licenciados 166 espetáculos tauromáquicos, enquanto, em 2022, se realizaram 174 espetáculos tauromáquicos, com um total de 289 mil espectadores.

De entre os três países europeus (Portugal, Espanha e França) onde ainda são permitidas as atividades tauromáquicas, os portugueses são – a fazer fé em dados difundidos – os que mais concordam com a abolição dessas atividades (a par dos franceses), os que mais discordam com o gasto de fundos públicos (71% contra 67% dos franceses e 64% dos espanhóis) e os que mais defendem que a União Europeia deve proteger o (dito) bem estar animal nas tradições culturais (74% contra 72% dos franceses e 69% dos espanhóis).



3. Deixo-nos de hipocrisias mal disfarçadas: as associações a favor ou contra as atividades ligadas aos toiros – refira-se que este termo se coaduna com os animais não-domesticados e pretensamente bravos – como que escondem outros intuitos e interesses, por vezes mal encobertos, tanto na teoria como na conduta prática. Usando a linguagem do mundo taurino, dos dois lados da barricada se escondem ideologias nem sempre consequentes como as tiradas citadas. Com efeito, custa muito considerar que algumas das posições contra a tourada (termo desadequado na terminologia) possam ser discutidas à volta da degustação de caracóis ou de lagostas, esses sim, cozinhados vivos! Há coisas da incongruência que chocam com as palavras, muitas delas ao sabor das modas e sob a manipulação de habilidosos sem rosto…



4. Fique claro: se um dia aparecer a patética ideia de levar a referendo popular este tema das (ditas) touradas serei a favor da manutenção desta atividade, que de si já não é generalizada, deixando ao critério atual e futuro do pronunciamento cultural de cada região. Pena seja que alguns dos que lutam contra esta ação regional se mantenham silenciosos quanto a outras ‘atividades culturais’ de duvidosa expressão de interesse para todos. Há tantos sinais de alienação coletiva que, quase se tornaria fastidioso, não incluir o futebol na rede de interesses ou de sentir que alguns precisam de tais manifestações contra-qualquer-coisa para sobreviverem na nesciência das suas motivações. Há maior exploração da pessoa humana do que ver escravos com a boa nos pés a serem vendidos, exaltados ou vilipendiados segundo a cor da camisola ou o resultado obtido? Os toiros são explorados e os jogadores de futebol não são ainda mais?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Depois dos incêndios a chuva e no intervalo lucubrações


Este mês de setembro foi fértil em acontecimentos contraditórios: dias de fogos sufocantes, gerados pelas centenas de fogos florestais a norte do Coimbra e, parcos dias decorridos, avisos para o risco de inundações. Deixo a título de exemplo duas mensagens (via sms) da ANEPC: quanto à onda de calor originada pelos incêndios, no dia 15 de setembro (domingo), às 10.14 horas; sobre chuva forte e persistente, com vento forte e risco de inundações, no dia 24 de setembro (3.ª feira), às 18.09 horas. Isto é, no espaço de dez dias fomos avisados para situações antagónicas no nosso tecido coletivo: prevenir antes do que remediar.

1. Sejam quais forem as causas aduzidas da vaga de incêndios, encontrem-se ou não os causadores (num misto de culpados e de beneficiados), vejam-se as consequências (económicas, sociais ou políticas), teremos sempre neste tema das condições climatéricas – onde se enquadram os incêndios e as inundações – algo que exige mais reflexão do que capacidade acusatória.

Mesmo sem nos darmos conta estes assuntos – incêndios e risco de inundação – podem ser enquadrados nas temáticas sociais de âmbito global, pois tanto uns como outros atingem todos, todos somos, de alguma forma, culpáveis e todos sofremos as consequências diretas ou indiretas. Recordemos os fumos por ocasião dos incêndios florestais que antecederam as chuvas ou vejamos as enxurradas decorrentes das chuvadas mais intensas.

2. Como não recordar essa frase de um matemático, na década de sessenta do século passado, considerada a ‘teoria do caos’: o bater das asas de uma borboleta num extremo do globo terrestre, pode provocar uma tormenta no outro extremo no espaço de tempo de semanas. De facto, estes episódios mais recentes da Natureza trazem-nos este pensamento à lembrança e aquilo que já fez de muito caminho na consciencialização de intercomunhão com os humanos. Cada vez mais estamos atentos a que todos somos responsáveis pelo futuro da Natureza, também ela criada por Deus. Por onde andaram alguns setores sociais e religiosos, quando acontecem tragédias como as que vivemos recentemente?

. Por estes dias teve algo entre o bizarro e o ridículo, a resposta à convocação de ‘manifestações’ em treze locais diferentes do nosso país de contestação à onda de incêndios dos últimos tempos. Que dizer de escassas dezenas nas ditas ‘manifestações’? Foi o tema que não interessou ou foi a rejeição da manipulação de certas forças que se tentam aproveitar das desgraças alheias para saírem da lura esconsa? Não haverá muitos dos que protestam que nada fazem pela recuperação da floresta e só se limitam a gritar nas horas do drama? Os acontecimentos recentes não revelam que o país urbano se está a borrifar para o mundo rural? Certas lágrimas chocam quem conheça as reações dos arredores da (dita) ‘Lisboa e Vale do Tejo’, que faz-de-conta que os resto do país é mesmo paisagem nas horas de decidir e de investir nas autarquias…

4. Em jeito de provocação respigamos da carta encíclica ‘Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum do Papa Francisco (de 2015): «Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito directas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra» (n,º 160).



António Sílvio Couto

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Cada português desperdiça 180 kgs de comida por ano



Cada português gasta, por ano, 350 euros em alimentos que não come, desperdiçando 184 quilos de comida anualmente. Esta é a conclusão de uma empresa que combate o desperdício alimentar – ‘Too good to go’ – a propósito do ‘dia internacional da consciencialização sobre a perda e o desperdício alimentar’, que ocorre, no próximo dia 29 deste mês.

1. Acreditando nos dados veiculados pela empresa aqui referida poderemos considerar que cada português desperdiça, em média semanalmente, cerca de dois quilos e meio de comida, contabilizando ao final do mês cerca de dez quilos de comida, e fazendo com que o nosso país se situe na quarta posição na União Europeia nesta matéria de desperdício alimentar. Outros dados a ter em conta – segundo a mesma fonte – cada português desperdiça em casa 336 euros em comida por ano, e se cada um gasta em média, em alimentação e bebidas, cerca de três mil euros por ano, então 3,4% deste orçamento “é gasto em alimentos que estão a ser desperdiçados” todos os anos.

2. Sintomaticamente estamos situados no hemisfério rico do Planeta (norte), explorando quantas vezes o hemisfério sul mais empobrecido do que só pobre. Embora possa haver a possibilidade de erradicar a pobreza e a fome, continuamos a gerir um sistema que reproduz cada mais pobres, senão económicos ao menos psicológicos e emocionais. O ‘dia internacional da consciencialização sobre a perda e o desperdício alimentar’ foi proclamado pela resolução 74/2019 da Assembleia Geral da ONU em 19 de dezembro de 2019, fazendo-se eco de uma sensibilização gerada, em 2016, na Dinamarca, quando um grupo de amigos viu ser deitada fora comida que não tinha sido consumida num restaurante, provocando uma aplicação e ligação entre consumidores e restaurantes, supermercados, mercearias e hotéis, permitindo aos utilizadores comprar a preços mais baixos produtos que não iam ser usados.

3. É neste contexto de globalização que podemos e devemos entender estas denúncias e avisos, tanto ao nível geral como em relação a cada um de nós. De facto, o nosso mundo ocidental foi-se deixando fascinar pelo consumismo, provocando necessidades escusadas e alimentando habituações desnecessárias: muito para além da oniomania (vício de comprar compulsivamente) temos de saber identificar e de criteriosamente gerir as subtilezas de um consumismo facilmente justificado, se não nos inquietarmos pelos valores e critérios cristão mais simples e exigentes.

4. Quem não se incomoda em ver crianças a brincarem com o pão, como se fosse uma bola de jogo? Quem não se interroga sobre pratos quase intocados de comidas nas mesas de certos restaurantes e espaços de fast-food’? Quem pode ficar indiferente aos amuos, birras e gritarias de crianças, em público, quando são ‘obrigados’ a comerem o que pediram de forma sôfrega e desmedida? Que dizer às cedências de pais e avós para com os petizes que exigem e depois abandonam certas guloseimas incontidas? Como não sentir repulsa para com certas festas e festanças onde se gastam pequenas fortunas para fazerem notar aos vizinhos – seguidores ou não nas redes sociais – que têm estatuto de pseudo-ricos, embora com bolsa de pobre na hora das contas?

5. Há tanta coisa que precisa de ser tocada com o máximo de frontalidade para que não se continue a viver nesta sociedade de fachada, onde se quer parecer sem ser e onde se deseja mais querer dar boa impressão – mesmo que falsa – do que em se viver na verdade, sem rede nem peias de nada nem quanto a ninguém. Cada vez mais se percebe facilmente se a cara corresponde com o verso, não meramente da moeda mas na vida sincera e leal… do nosso dia-a-dia!

Fui aprendendo, pelos diversos lugares onde tenho vivido, que muitos/as do que se insinuam e ganham ascendente por algum tempo, com facilidade são desmascarados sem tal se terem apercebido.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

‘Depois, não se queixe’ Causas – culpados – consequências

 

Parece ter entrado na linguagem corrente uma expressão usada num programa televisivo de tendência judicial a expressão – ‘depois, não se queixe’ – em que aquele que faz de ‘juiz’ (ao que consta reformado da atividade) adverte os contendores para o bom senso e o uso correto da própria justiça, sem exageros nem abusos.

Vem isto a propósito da mais recente onda de fogos florestais – vulgo incêndios – onde se mescla um conjunto de situações, que urge detetar, perceber e mesmo corrigir: as causas, os culpados e as consequências… de tudo isto que tem tanto de grave quanto de questionável.

1. Causas dos incêndios – de muitas e variadas formas se vai falando das causas, umas de forma clara e assumida e outras quase em surdina e com meias palavras (suposições, acusações e até preconceitos) numa complexidade em que todos ficam a perder e poucos saem beneficiados. A razão dos incêndios é a falta de limpeza das matas e montes? Onde estão os proprietários para lhes cobrem a multa? Não andarão por ‘lisboa e vale do tejo’ usufruindo das regalias de viverem como urbanos, desprezando os rústicos? As alterações climáticas conseguem arcar com a responsabilidade da mudança de condições a destempo? Ainda se irá a tempo de corrigir os destemperos e atrocidades humanos na exploração da mãe-natureza? Por onde andam os tais ‘climáticos’ tão afanosos no protesto, mas fugidios no confronto com as questões simples do dia-a-dia? Os ecologistas não serão dos que falam preferencialmente depois das coisas acontecerem, como os engenheiros de obras-feitas, que nunca traçaram um risco por incompetência e ignorância?

Ouvir o role de razões dos técnicos (climatólogos, professores universitários, meteriologistas ou sabichões do ambiente) levados (ou idos) às televisões soa a conversa de inutilidades, onde só apraz a quem se faz ouvir…e com parco proveito à generalidade da população, tal a linguagem hermética, os conceitos exibidos e as insuficientes propostas de resolução…

2. Os culpados – sem mais nem quê é posta em dúvida a possível intervenção dos incendiários, pois as condições como que os desculpam e as condicionantes vão noutra linha de acusação. A deteção de ignições noturnas quase surgem como ‘normais’, deixando de parte a intervenção do fator humano. Com que habilidade se engendram outros causadores da praga de incêndios: interessados na combustão de eucaliptos e pinheiros, pois servirão outros interesses: empresas das madeiras, exploradores do lítio e até o fator cimento em ordem à construção em terrenos ainda não desafetados da zona agrícola.

Sempre teremos de colocar a pergunta: ultrapassando a negligência humana, a quem interessa queimar montes e florestas? O lóbi da culpabilização ainda não fechou a lista dos possíveis causadores de mais uma perda irreparável da nossa fortuna coletiva, que é a manta verdade da nossa paisagem…

3. As consequências para além das perdas da frágil economia rural, vemos que muitos autarcas têm nos fogos florestais uma boa dose para a sua propaganda pessoal e política. Não é mera coincidência que grosso modo o responsável da proteção civil concelhia é o edil de serviço: isso dá-lhe promoção e quase serve de cartaz às pretensões futuras. Não podemos esquecer que, em 2025, há eleições autárquicas e quem pode não deixará de aparecer como o salvador de recurso agora e daqui a um ano.

Em parcos dias (de 15 a dezanove de setembro) tivemos uma área ardida de mais de cem mil hectares, resultando sete mortos, milhares de bombeiros e outras forças de socorro (nacionais e estrangeiras) envolvidas, populações em sobressalto e com dezenas de casas (habitações e locais de trabalho) consumidas pelas chamas.

4. Depois, não se queixem, senhores dos gabinetes com ar condicionado e de falinhas rebuscadas, senhores políticos que se esconderam na hora da tragédia. Há um país que não corresponde àquele que pretendem impingir-nos desde os postos de comando. Cuidem-se, pois a revolta pode custar-lhes o posto!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Abrir ‘porta santa’ numa cadeia…no ano jubilar

 


«No Ano Jubilar, seremos chamados a ser sinais palpáveis de esperança para muitos irmãos e irmãs que vivem em condições de dificuldade. Penso nos presos que, privados de liberdade, além da dureza da reclusão, experimentam dia a dia o vazio afetivo, as restrições impostas e, em não poucos casos, a falta de respeito. Proponho aos Governos que, no Ano Jubilar, tomem iniciativas que lhes restituam esperança: formas de amnistia ou de perdão da pena, que ajudem as pessoas a recuperar a confiança em si mesmas e na sociedade; percursos de reinserção na comunidade, aos quais corresponda um compromisso concreto de cumprir as leis.

Trata-se de um apelo antigo que, provindo da Palavra de Deus, permanece com todo o seu valor sapiencial ao invocar atos de clemência e libertação que permitam recomeçar (…). A fim de oferecer aos presos um sinal concreto de proximidade, eu mesmo desejo abrir uma Porta Santa numa prisão, para que seja para eles um símbolo que os convida a olhar o futuro com esperança e renovado compromisso de vida» (Francisco, ‘Spes non confundit’, bula de proclamação do Jubileu ordinário do ano 2025, n.º 10).

1. Esta citação da bula papal fez-me vir à lembrança e trouxe-me à reflexão, perante os acontecimentos recentes da evasão de uns presos – dizem que perigosos – de uma cadeia de alta-segurança, em Portugal. Com efeito, precisamos de estar mais atentos a esta realidade humana e social. Os cerca de doze mil presos nas quase cinco dezenas de cadeias deveriam merecer mais atenção de todos, desde a família até aos responsáveis políticos e judiciais, sem esquecer as sociedades de onde são provenientes esses encarcerados. Quantas vezes, os ‘nossos presos’ são ostracizados por aqueles que os conhecem, como se fossem novos leprosos, irrecuperáveis e perdidos para sempre. Esta mentalidade é bem mais comum do que se julga, tanto consciente como inconscientemente.

2. De facto, a passagem de alguém pela cadeia para corrigir os erros, para reparar as falhas, para compensar a sociedade deixa marcas nas pessoas que foram vítimas ou réus de encarceramento. Por vezes somos tentados a olhar mais para as consequências do que para as causas que levaram alguém à ‘escola da cadeia’: o ambiente, as condições ou as circunstâncias que conduziram à delinquência podem contar menos do que a criação de condições de recuperação de quem entrou no mundo da criminalidade. Já dizia S. Agostinho na sua sábia experiência: em cada um de nós reside o maior santo ou o pior criminoso, tudo depende das circunstâncias de cada qual….

3. Apesar das contingências de trabalho com presos, há em muitas dioceses, pessoas que se ocupam com os detidos e também com as suas famílias: aos primeiros se vai chamando visitadores, aos segundos pouco de visível se vê na prática. É cada vez mais necessário olhar par este setor humano e social, procurando fazer com que os presos, nas suas diferentes etapas de recuperação, sintam que nem todos os condenam, mesmo que possam ter praticado algo que os levou a serem privados da liberdade.

4. Colhemos uma sugestão do Papa Bento XVI, na exortação apostólica pós-sinodal ‘Sacramentum caritatis’ sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja: «A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25, 36), individuou na visita aos presos, uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio Senhor no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial, participar na Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e doloroso pode seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a plena recuperação social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembleia sinodal, peço às dioceses para providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente investimento de forças na atividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos». Temos um largo e longo caminho a fazer. Não adianta julgar os presos, precisamos de os ajudar a fazer o seu caminho de fé, descobrindo Deus que os ama e a Igreja que cuida deles.



António Sílvio Couto

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Procissão: entre manifestação de fé e cortejo etnográfico

 


Nos tempos mais recentes sinto-me um tanto confuso com certas ‘procissões’, onde parece caber tudo e o resto, dando a entender que algo vai mal no reino desta preciosidade religiosa com especial significado na expressão pública da fé católica. Se em certos lugares ou regiões se podem incluem alguns elementos sociais e associativos (estandartes ou pessoas trajadas com as suas roupas típicas), noutros isso correrá o sério risco de ser confundido com outras manifestações extrarreligiosas e por que não parecer uma espécie de cortejo etnográfico, que noutras localidades é um número específico das festas. Esta partilha não está isenta do reconhecimento de já ter tentado algumas destas vertentes e agora reconhecer que me enganei e fui enganado.

Recorremos, por isso, ao ‘Diretório sobre piedade popular e liturgia’ (DPPL) da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (n. os 245-247) para elucidar, esclarecer e (talvez) corrigir alguns pontos, perspetivas e vivências.

* Significado e modalidades das procissões – «na procissão, expressão cultual de caráter universal e de múltiplos valores religiosos e sociais, a relação entre a Liturgia e a piedade popular reveste-se de particular relevo. A Igreja, inspirando-se nos modelos bíblicos, determinou algumas procissões litúrgicas que apresentam uma tipologia variada»: algumas evocam acontecimentos salvíficos referidos ao próprio Cristo (apresentação, Ramos, a da vigília pascal; outras são votivas, como a procissão eucarística na solenidade do Corpo de Deus, as rogações e a romagem ao cemitério nos Fiéis Defuntos; outras ainda são necessárias para a realização de algumas ações litúrgicas (nalguns momentos da celebração da eucaristia, entrada, para a proclamação do evangelho, na apresentação das oferendas, comunhão), o cortejo fúnebre.

* Por que fazem (ou podem fazer) procissões com imagens de santos? «A piedade popular, sobretudo a partir da Idade Média, deu vasto espaço às procissões votivas que, na época barroca, atingiram o apogeu: para honrar os santos padroeiros de uma cidade ou de uma corporação, levavam-se processionalmente as relíquias ou uma estátua ou efígie, pelas ruas da cidade». Partindo deste enquadramento histórico-social o DPLL refere-se às procissões nas suas formas genuínas como «manifestações da fé do povo e têm frequentemente conotações culturais capazes de despertar o sentimento religioso dos fiéis». No entanto, considera que as procissões votivas dos santos, na perspetiva da fé cristã, «estão expostas a alguns riscos e perigos: que as devoções prevaleçam sobre os sacramentos (…), as manifestações exteriores sobre as disposições interiores; considerar a procissão como momento culminar da festa; concebe o cristianismo como uma ‘religião de santos’; degeneração da própria procissão que, de testemunho de fé, acaba por se converter em mero espetáculo ou num ato folclórico».

Quanta coisa está denunciada neste excerto do DPLL sobre a maior parte das ‘nossas procissões’, ditas como majestosas, grandiosas ou imponentes. Só se for na ignorância e má-fé! Quantos nem conhecem os santos/santas, evocações/invocações de Nossa Senhora ou de Cristo. Que temos feito para explicá-los correta e simplesmente? Deixar correr não desacreditará o que temos vindo a fazer?

* Dimensões das procissões: «para que a procissão conserve o seu caráter genuíno de manifestação de fá, é necessário que os fiéis sejam instruídos sobre a sua natureza, do ponto de vista teológico, litúrgico e antropológico».

= Do ponto de vista teológico a procissão é um sinal da condição da Igreja, povo de Deus a caminho que, com Cristo e atrás de Cristo, percorre os caminhos da cidade terrena, é um testemunho de fé e é ainda sinal da tarefa missionária da Igreja pelas estradas do mundo. Não serão muito mundanas tantas das procissões?

= Do ponto de vista litúrgico deverão as procissões, inclusive as de caráter mais popular, orientarem-se para a celebração da liturgia, de igreja para igreja, sob a presidência eclesiástica, iniciada com um momento de oração, onde não falte a Palavra de Deus e com sinais de fé cristã, com velas (em referência ao batismo) acesas, terminando com a bênção de um ministro da Igreja. Velas levadas por não-batizados, porquê?

= Do ponto de vista antropológico, a procissão lembra o caminho percorrido com os outros, unidos para a mesma meta, solidários no compromisso de vida. Será compatível serviço com exibição social?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Identidade ou identidades – família ou famílias

 


Cerca de seis meses decorridos um novo livro sobre questões idênticas, embora sob perspetivas muito diversas. Em março passado saiu – ‘Identidade e família’; por estes dias foi publicado – ‘Identidades e famílias’. O primeiro tinha por subtítulo – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade. O segundo livro apresenta como antetítulo – reflexões sobre a liberdade… e em pós-título – uma visão múltipla do futuro do país. Nitidamente o segundo livro sobre ‘identidades e famílias’ é uma reação sobre o primeiro, mesmo que as suas coordenadoras rotulem o livro saído em março de reacionário, elas escreveram em reação algo assanha e verrinosa.
Façamos uma resenha dos dois livros, claramente em campos ideológicos diferentes e, por vezes, antagónicos.

1. O livro «Identidade e família – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade», é uma obra coordenada pelos quatro fundadores do ‘Movimento acção ética’ – António Bagão Félix, Pedro Afonso, Paulo Otero e Victor Gil. Este livro, editado pela «Oficina do Livro», reúne vinte e dois textos de vários autores (22), tais como (pela ordem alfabética que aparece na capa): Fernando Ventura, Gonçalo Portacarrero de Almada, Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Almeida e Brito, Isabel Galriça Neto, Jaime Nogueira Pinto, João César das Neves, João Duarte Bleck, José Carlos Seabra Pereira, José Ribeiro e Castro, Manuel Clemente, Manuel Monteiro, Manuela Ramalho Eanes, Margarida Gordo, Nuno Brás da Silva Martins, Paulo Otero, Pedro Afonso, Pedro Vaz Patto, Pureza Mello, Raquel Brízida Castro, Ruiz Diniz e Vasco Pinto de Magalhães.

Neste livro com duzentas e oito páginas fala-se da importância da família, como um pilar central da vida em sociedade, considerando-a “natural, universal e intemporal”. Refere-se ainda a cultura de morte, onde se enumeram os adversários da família que, de maneira subtil ou explícita, contribuem para sua destruição. Por último, apresenta-se a ideologia de género, considerando-a impositora de um novo modelo de pensamento único, ideologia essa que compromete o desenvolvimento humano fundado em valores, liberdade e autonomia.

2. Por seu turno, no livro «Reflexões Sobre a Liberdade – Identidades e Famílias”: uma visão múltipla do futuro do país». Editado também pela «Oficina do Livro», reúnem-se vinte textos, dos seguintes autores: André Coelho Lima, Carla Castro, Catarina Furtado, Catarina Marques Rodrigues, Daniel Oliveira, Fabíola Cardoso, Fernanda Câncio e Maria Fernanda Câncio, Francisca Van Dunem, Hilda de Paulo, Henrique França, Isabel Moreira, Joana Mortágua, João Maria Jonet, Leonor Caldeira, Maria Castello Branco, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, Susana Peralta, Teresa Leal Coelho e Teresa Violante.

Numa espécie de autoapreciação, as coordenadoras do livro dizem que podem todos raramente estar de acordo no campo político, mas têm como objetivo comum abrir uma janela para a multiplicidade de pontos de vista, opções individuais e caminhos de vida, o que caracteriza a sociedade diversa e moderna que Portugal quer ser. É referido ainda que para os autores e autoras, é um imperativo de justiça que a sociedade seja construída com base no respeito e proteção dos direitos e escolhas de todas as pessoas, incluindo as que fazem parte de grupos historicamente discriminados...


3. Depois da tese veio a antítese e procura-se agora uma síntese. Antes de tudo é significativo que se usem formas diferentes de tratar o problema: os de influência judaico-cristã preferem o singular – identidade e família; enquanto os de linguagem menos vinculada (embora alguns se digam dessa área) ao teor cristão usam a fórmula no plural – identidades e famílias. Por outro lado, agora como anteriormente nota-se uma pretensão mais democrática (à sua maneira e vivência) das forças que se reclamam capciosamente da liberdade por contraste com a tradição. Não deixa de ser intrigante que haja quem pretenda influenciar o futuro como se fosse a pedra-de-toque exclusiva da modernidade... Visões e perspetivas, respeitem-se!


António Sílvio Couto

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Por que excluem (normalmente) a Igreja?

 

Na televisão estatal há um programa – visto e revisto nos vários canais de difusão – intitulado ‘portugueses pelo mundo’, numa apresentação diversificada de lugares e de temas, que conta com quase uma dezena de temporadas. Verdadeiramente é daqueles programas que confirma que em qualquer parte do mundo se pode encontrar um português, com ligações mesmo que ténues à mãe-pátria e onde surge irrepreensivelmente a palavra ‘saudade’ e quanto isso significa fora das fronteiras do território (continente e ilhas) nacional.

1. Ocasionalmente tenho visto e percorrido os lugares mostrados e as intervenções dos mais diversos intervenientes. Aprende-se muito e viaja-se com aqueles que saíram do chão-pátrio. As intervenções andam quase sempre nas áreas do social, no campo profissional, em espaços de diversão ou de desporto, com referências às comidas locais (quase sempre em confronto com a de cada um dos entrevistados), a organização socioeconómica dos países de acolhimento, o mundo do trabalho, os aspetos culturais de lá em comparação com os de cá… Os lugares visitados em cada cidade ou região mostram-nos a riqueza humana e civilizacional dos povos, das nações e das diversas linguagens.

2. Sem pretender ser menos correto – e muito menos desonesto na apreciação – na leitura de tais programas, há uma dimensão que quase nunca aparece e em muitas circunstâncias ela é o vínculo unitivo de tantos dos nossos emigrantes: o papel e lugar da Igreja católica entre esses portugueses, pois os ditos ‘centros culturais’ deixam muito a desejar quanto às atividades e processos de unificação dos portugueses no estrangeiro, promovidos e realizados pelas missões católicas. Vi-o e pude testemunhá-lo nalgumas das missões na Alemanha e na Suíça, nos Estados Unidos da América e mesmo em Itália. Para muitos portugueses a missa de domingo ainda é o ponto de referência aos seus conterrâneos e daí se gera partilha humana e emocional de uns para com os outros e todos para com o nosso país.

3. Quando vemos a polarização dos portugueses no estrangeiro à volta da seleção nacional de futebol masculino fica-me um amargo de coração, pois as procissões e os momentos de devoção a Nossa Senhora de Fátima fazem mais pela identidade do país lá fora do que a bandeira nacional ou o hino. Quando olhamos para esses programas televisivos e vemos como que ser varrida da referência, que não da memória, a alusão à fé católica somos levados a suspeitar que há uma pretensão subterrânea de confundir o papel de embrulho com o presente embrulhado. Sim, embora pouca esclarecida na maioria dos casos, a fé desses portugueses espalhados pelo mundo não serve os intentos de tantos catequizadores anticristãos como pretendem insinuar-se…de forma repetida e contumaz.

4. Efetivamente há um fogo que crepita sob as brasas do afã de trabalho de tantos desses emigrantes. Eles, na sua maioria, saíram do país para conquistar melhores condições de vida económica para si e para os seus, mas a sua crença mais profunda, embora um tanto suspensa, não perdeu a energia de fundo. O problema é que se nota um certo discurso anódino de muitos dos que apresentam os valores e critérios dos nossos emigrantes, fazendo crer a quem veja tais programas televisivos que tudo se reduz à festança e à beberragem…sem Deus nem santa Maria!

5. Este panorama quanto aos portugueses espalhados pelo mundo tem de nos fazer rever a nossa atitude para com os imigrantes – já são de um milhão – que têm chegado ao nosso país. Da mesma forma como quisemos que os nossos portugueses tivessem assistência religiosa através de padres enviados para essas missões, assim temos de saber estar atentos aos que chegam para que lhes demos idênticas condições àquelas que foram dadas aos nossos compatriotas. Numa igreja no norte da Alemanha havia dez línguas diferentes que se serviam do mesmo espaço para celebrarem a sua fé. Estaremos capazes de fazer o mesmo nas nossas igrejas, abrindo-as aos imigrantes nas suas línguas? Demos aos outros o que outros nos deram a nós…



António Sílvio Couto

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

É pecado grave rejeitar os migrantes

 


«Nesses mares e desertos mortais, os migrantes de hoje não deveriam estar – e infelizmente estão. Mas não é através de leis mais restritivas, não é mediante a militarização das fronteiras, não é através de rejeições que alcançaremos este resultado. Ao contrário, só o conseguiremos ampliando as rotas de entrada seguras e regulares para os migrantes, facilitando o refúgio para quantos fogem das guerras, da violência, da perseguição e de muitas calamidades; só o conseguiremos favorecendo, em todos os sentidos, uma governance global das migrações fundamentada na justiça, na fraternidade e na solidariedade. E unindo forças para combater o tráfico de seres humanos, para impedir os traficantes criminosos que exploram sem piedade a miséria dos outros».

Este excerto da audiência semanal do Papa Francisco de 28 de agosto passado – dia litúrgico de S. Agostinho (santo do norte de África, hoje não-cristão) – contém denúncias e desafios, projetos e provocações, riscos e recomendações.

Vejamos cada um destes paralelos:

1. Denúncias e desafios. Que grande contraste encontramos nestas palavras do Papa com as posições de certos políticos ditos da área do cristianismo: essas posições cheiram mesmo a pecado. Diz o Papa: «há quem trabalhe sistematicamente com todos os meios para afastar os migrantes – para afastar os migrantes. E isto, quando é feito de modo consciente e responsável, é um pecado grave». Digo, do ponto de vista da prática religiosa e concretamente ao abeirar-se para a comunhão eucarística: se, um desses políticos que têm vindo a acirrar as pessoas contra os imigrantes, viesse para comungar, recusar-lhe-ia dar a hóstia (com Jesus sacramentado), pois não pode receber o Cristo feito comunhão quem gera e faz divisão e mesmo anuncia atrocidades para com os seus irmãos, mesmo que estes nem sejam crentes e tão pouco cristãos. Não podemos brincar com conceitos nem ser fomentadores da violência tácita ou explícita…como alguns políticos são e, desgraçadamente, se comportam.

2. Projetos e provocações. De muitas e variadas formas o Papa Francisco tem vindo a colocar no centro das suas preocupações tantos e tantos concidadãos do mundo que sucumbem ao procurarem melhores condições de vida ou ao fugirem da perseguição e da miséria. Referiu na audiência que estamos a seguir: «Na era dos satélites e dos drones, há homens, mulheres e crianças migrantes que ninguém deve ver: escondem-nos. Só Deus os vê e ouve o seu clamor. E esta é uma crueldade da nossa civilização». Isto dever-nos-ia envergonhar como cultura e como civilização, na medida em que uns tantos exploram outros e uma fatia significativa de pessoas continua a ser explorada. Esses seres humanos são desumanizados em razão dos mais funestos e ignóbeis interesses e com a conivência silenciosa de quase todos…

3. Riscos e recomendações. Segundo dados disponíveis, em Portugal, atualmente, os imigrantes asseguram muitos dos serviços e trabalhos: na construção civil, na restauração e turismo, pesca e agricultura… e noutros serviços que os portugueses já não querem fazer e que, em tempos remotos, foram realizar nos países para onde emigraram. Efetivamente, as coisas mudam e as tarefas menos agradáveis são deixadas para outros que, por vezes, são considerados numa escala social inferior. Como referiu o Papa na audiência que estamos a seguir: «estes homens e mulheres corajosos são sinal de uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura negativa da indiferença e do descarte: o que mata os migrantes é a nossa indiferença, a atitude de descarte». De facto, entraríamos em colapso social e demográfico se nos faltassem os imigrantes. Por isso, soa a falta de senso o que certas forças partidárias dizem dos imigrantes, embora alguns nada seriam se não tivessem sido emigrantes ou quando estudaram no estrangeiro.

4. Urge, portanto, mudar de registo, aprendendo com as circunstâncias de cada tempo e com as condicionantes de cada lugar. Se assim não for estaremos sempre desarticulados da História, toda ela feita de grandes ou de pequenas migrações… Esta riqueza engrandece-nos e faz-nos ser humildes!



António Sílvio Couto