Temos vindo a assistir, sobretudo por parte da Igreja católica e dos
Papas em particular, a inúmeros pedidos de ‘perdão’, pelas mais diversas
razões, sob a tutela de díspares razões e ao alcance de holofotes públicos sem
imoderação. Embora não sejam questões do foro teológico-dogmático, muitos
desses ‘perdões’ estão – na minha perspetiva – eivados de um forte erro: a
descontextualização histórica.
Não está, minimamente, em causa o questionamento da utilidade – nalguns
casos mais social e moral (ética) do que com outra tonalidade – destes ‘perdões’,
mas podemos colocar uma outra leitura que não poderá (ou não deverá) ficar fora
da repercussão desses gestos… na Igreja e para com o mundo.
1. Não estaremos –
à semelhança de outras visões da História – a distorcer a leitura dos factos
sem os enquadrarmos no seu tempo? Não estaremos a servir mais os intentos de
certas ideologias, mesmo na revisão que fazem da ‘sua’ história? Não andaremos
a gastar tempo com revisionismos mais ou menos perigosos, quando não soubemos
interpreter a nossa posição ao tempo dos acontecimentos? Não parece que
nivelamos os ´perdões’, como se fossem todos iguais ou tivessem o mesmo alcance
histórico, moral ou espiritual?
2. A vaga de
´perdões’, por parte da Igreja católica, teve um maior incremento por ocasião
do «Jubileu do ano 2000» e protagonizada pelo Papa João Paulo II, ao tempo
inserida na vertente da purificação da memória como um dos itens da vivência
jubilar. Nessa época boa parte dos ‘perdões’ configuravam questões de índole
religiosa, quando ao passado da Igreja e do relacionamento com outros grupos
religiosos. Aqui se situaram o tema recorrente da inquisição e a forma como o
papado tinha lidado com os judeus, ao tempo da segunda guerra mundial…
3. Foi com o novo
milénio que emergiram em catadupa acusações – muitas delas silenciadas e/ou
encobertas por longo e demasiado tempo – envolvendo feridas, mau-comportamento
(à luz dos valores cristãos de sempre), injustiças e, porque não, crimes contra
pessoas indefesas, em especial crianças e adolescentes… numa onda de ‘abusos’
transversais em várias partes do mundo. Foi num misto de espanto e de
incredulidade que vimos serem apresentados casos e situações, referidas pessoas
e muitos responsáveis que sairam do anonimato pelas razões mais execráveis e
quase-incompreensíveis.
4. De uma forma
neo-inquisitorial tudo e todos ficaram sob suspeita, quase tendo quem quer que
seja de provar o contrário. Esta onda varreu inaplacavelmente quase todas as
estruturas da Igreja católica, desde paróquias a seminários, de colégios a
congregações, movimentos laicais e estruturas de assistência…ao nível diocesano
ou mesmo na Santa Sé, notando-se um farejar acusatório a roçar o doentio em
certos setores na Igreja e mesmo da sociedade em geral.
5. Num esforço
titânico, o Papa Francisco como que se lançou a traçar linhas de denúncia, a
criar mecanismos diocesanos e da Igreja universal, por forma a não deixar a
mais pequena sensação de que (se) estaria de acordo com o passado recente (umas
vezes próximo e noutras mais alargado nas intenções) de concordância com este
flagelo dos membros da Igreja. Se isso colheu alguma concordância e admiração
das entidades seculares, no seio da Igreja foram surgindo engulhos – sobretudo
na abrangência ao questionar o sigilo de confissão – quanto à utilidade, à
serenidade e à razoabilidade – de tais medidas. Qual a fronteira entre o
conhecer tais casos em função do sacramento da confissão e à exigência de
reportar o que se sabe às autoridades judiciais do mundo?
6. Desgraçadamente
temos visto uma leitura excessivamente social da função da Igreja católica no
mundo. Certas forças (de dentro e de fora) quedam-se mais pelo trabalho
horizontal da Igreja e como que se esquecem da função evangelizadora – da Palavra
e da missão – em que a Igreja foi investida por Jesus. Não teremos,em breve, de
pedir perdão a Deus e aos outros por nos andarmos a esquecer desta tarefa
específica?
António Sílvio Couto
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