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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A história da menina abandonada... descrente

Num destes domingos – onde nem futebol havia na televisão e das notícias se destacava o rescaldo da disputa eleitoral na Madeira – vi, ouvi e fez-me pensar a história de uma tal concorrente, na ‘casa dos segredos 2’, que tinha sido abandonada pela mãe aos seis anos, com um pai alcoólico e mais uns tantos irmãos... que, numa tal manhã de sábado, ficaram sem mãe (fugira sem deixar rasto) e passaram fome durante dias, subsistiu com a ajuda de uns padrinhos, que com o pão lhe davam pancada...
Ela dizia que tinha dificuldade em  manifestar carinho para com as outras pessoas e que não acreditava – talvez quisesse dizer que ‘não era capaz de acreditar’ – em Deus, que assim tratara quem precisava de aconchego.
Diante deste quadro pessoal e emocional, familiar e social surgiu-me alguma necessidade de tentar compreender esta – como tantas outras vidas, mais jovens ou mais velhas – pessoa, descortinar mais as suas razões do que em pretender dar lições nem tão pouco formular juízos de valor.

= Carências afetivas... assumidas ou compensadas?
A consciência desta jovem era clara: não era capaz de dar afeto porque não o tinha recebido, na hora devida e pelas pessoas que lho deviam dar ou de quem esperava esse carinho, que alimenta mais do que o pão para a boca. Esta explicitação pode ser entendida ainda melhor na medida em que a interveniente fez/faz estudos universitários e pode, com mais propriedade, interpretar aquilo que lhe aconteceu... embora sofrendo e manifestando feridas e cicatrizes na sua personalidade.
De fato, há imensas pessoas que, quando com elas nos cruzamos ou até conversamos, nos fazem pensar: ninguém é como é – tem um rosto triste ou alegre, é simpática ou agressiva, se torna acolhedora ou é de arrepiar – sem razões (mínimas) de assim ser. Cada um veja por si mesmo e poderá compreender um tanto melhor as reações e atitudes dos outros!
Aquela jovem defendia-se não exprimindo os seus sentimentos/emoções recalcados/as pela deficiente vivência na hora apropriada... enquanto criança e talvez como adolescente, em família e noutros círculos do seu relacionamento.
Por outro lado, ao vermos a exploração de certos sentimentos em maré de maturidade – psicológica e emocional – como que sentimos uma maior dor e agreste sofrimento para com pessoas traumatizadas e/ou imaturas... na dimensão afetivo/psicológica, pois vão criando mal-estar à sua volta sem culpa, embora culpabilizando os outros, sobretudo, os mais próximos.

= Descrente em si, nos outros e em Deus?
Que pode Deus ter a ver com a experiência de não-carinho daquela jovem? Que sinais são emitidos para que Deus seja culpado da sua desgraça? Onde pode ser exigida a presença de Deus, se os culpados são os humanos? Será Deus uma projeção das lacunas humanas e das deficiências familiares? Que Deus será capaz de absolver quem nos fere, magoa e traumatiza?
A ‘Teresa’ – é o nome, mas poderia ser outro qualquer – desta história tem dificuldade em ver que haja um Deus que permite alguém ser abandonado: esse Deus é como que culpado da sua desgraça, mesmo que não acredite n’Ele. Aquele deus é uma espécie de demiurgo que teria de favorecer os mais fragilizados, em vez de dar cobertura aos mais fortes e adultos... ou será o contrário: os mais fortes deveriam tutelar os mais frágeis à luz dos sinais de inquietação próprios e alheios?
Por vezes, na nossa experiência de relação com Deus, como que inventamos desculpas para que andemos de rédea solta pelo simples fato de que os humanos – homens ou mulheres, em Igreja ou fora dela – nos podem impedir de aceder a Deus... tal como precisávamos de dialogar com Ele. Efetivamente os meios que nos são dados, muitas vezes, criam obstáculos à presença de Deus connosco e de nós com Deus: pequenos problemas fazem grande confusão, na medida em que o rosto de Deus, na nossa vida quotidiana, é, muitas vezes, abstrato, difuso e (quase) impessoal.
Pela mais viva compaixão para com aquela jovem do concurso da ‘casa dos segredos 2’, acho que deveríamos rezar por ela para que possa encontrar alguém que lhe revele dignamente o rosto de Deus feito carinho em Jesus... ontem, hoje e para sempre.

António Sílvio Couto

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