Sem pretendermos dar quaisquer lições, importa situar as ‘festas populares’ na sua componente religiosa como atos de cultura, incluindo vários aspetos da nossa linguagem mais ou menos inteletualizada, com recurso a certos tiques de mito e/ou inseridas na vertente ritual.
Num tempo como este que estamos a viver, designado de ‘crise’, as épocas de festa tornam-se como que catalisadores ou escapes da nossa vida pessoal e mesmo coletiva. O recurso à descontração gera, em nós e à nossa volta, novos comportamentos, nem sempre perceptíveis na sua singularidade.
De fato, é na dificuldade que se reúnem todas as forças para que sejamos capazes de refontalizar a nossa ‘personalidade coletiva’… mais abrangente e profunda.
= Manifestações da religiosidade popular
Partindo daquilo que se diz no Catecismo da Igreja Católica (n.º 1674 a 1676) como que podemos alicerçar a nossa convicção de que as festas religiosas manifestam «o sentimento religioso do povo cristão», tendo várias expressões desse sentimento – note-se que não se diz da racionalidade nem da emotividade – desde as mais comuns, como as visitas aos santuários, as peregrinações e as procissões até às mais populares, como as danças religiosas – veja-se a expressão do folclore e das suas letras – incluindo-se mesmo os momentos de via-sacra e as recordações trazidas/levadas dos lugares visitados ou outros objetos religiosos… normalmente benzidos.
Citando o Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Liturgia Sacrosantum Concilium (n.º 13), o Catecismo refere que as festas religiosas ou manifestações da religiosidade popular «são um prolongamento da vida litúrgica da Igreja, mas não a substituem. ‘Devem ser organizadas, tendo em conta os tempos litúrgicos e de modo a harmonizarem-se com a liturgia, a dimanarem dela de algum modo e a nela introduzirem o povo; porque, por sua natureza, a liturgia lhes é, de longe, superior’».
Por seu turno, no Directório sobre a Piedade popular e liturgia (n.os 245 a 247), falando das procissões, refere-se: «na procissão, expressão cultual de carácter universal e de múltiplos valores religiosos e sociais, a relação entre a liturgia e a piedade popular reveste-se de particular relevo».
Será que temos tido para com as várias manifestações da religiosidade popular uma atenção ou uma desculpa? Não será que, muitas vezes, deixamos correr as coisas para não termos problemas, embora saibamos que nem tudo está correto? Até onde poderá ir a nossa intervenção delicada, serena e cuidadosa para que, em particular, as procissões possam ser manifestações de fé e não de mero folclore com cobertura religiosa, mas não cristã?
Tal como se diz no Catecismo, «para manter e apoiar a religiosidade popular, é necessário um discernimento pastoral», seja para purificar ou para corrigir «o sentimento religioso subjacente a essas devoções e para fazer progredir no conhecimento do mistério de Cristo».
Por outro lado, o Directório diz: «Nas suas formas genuínas, as procissões são manifestações da fé do povo e têm frequentemente conotações culturais capazes de despertar o sentimento religioso dos fiéis. Porém, do ponto de vista da fé cristã, as ‘procissões votivas dos santos’ [levando processionalmente as relíquias ou uma estátua ou uma efégie dos santos pelas ruas da cidade], tal como outros exercícios de piedade, estão expostas a alguns riscos e perigos», tal como serem preteridas aos sacramentos, sobrepondo-as como manifestações exteriores e confundindo-as com um mero espectáculo ou num acto folclórico...
Não basta trazer para a rua as imagens e deixar correr, pois muitos dos que participam e, por maior razão daqueles que assistem, nem conhecem os santos ou santas em desfile!
Citando novamente o Directório é urgente reconhecer, aceitar e aprender, pois «para que a procissão conserve o seu carácter genuíno de manifestação de fé, é necessário que os fiéis sejam instruídos sobre a sua natureza, do ponto de vista teológico, litúrgico e antropológico».
= Saber ‘por que vêm’ ou perceber ‘como vão’?
Esta frase como que pode resumir, numa breve avaliação, sobre as razões que fazem tantas pessoas – mais ou menos conscientemente – irem à procissão. Neste ‘irem’ tanto pode estar a participação ativa como o simples ato de ficar a ver a procissão.
É digno de ser questionado quem compõe a procissão. De fato, muitas vezes os intervenientes pode ser do foro interno da Igreja, que a sair para a rua se faz exterior ou ainda da instância não estritamente religiosa. Aqui poderá começar-se um diálogo com os ‘gentios’. Com efeito, as (ditas) ‘forças vivas’ da terra podem e devem participar na procissão como expressão da vida humana, social, psicológica e espiritual de um povo... para além da expressão religiosa... católica.
Cremos que todos quantos representem associações de valor humano, desportivo, cultural, de setores sociais relevantes (reformados ou jovens)...deviam ser abordados para integrarem a procissão, como espaço de fé, consciente ou difusa, mais ou menos cristã.
Poderiam até vestir as suas roupas mais significativas e/ou seus estandartes…Bastará reparar nos ranchos etnográficos, folclóricos… que tinham as vestes de festa, normalmente para participarem na missa e nas procissões de festa.
Este diálogo é urgente ser feito para que não nos escapem para outras ‘procissões’ políticas, sindicais e/ou partidárias!
= Desafios ao diálogo Igreja/mundo
O diálogo feito ou a fazer tem de primar pelo respeito mútuo e aberto. Ninguém gostará de ser chamado para servir de enfeite a uma iniciativa – seja da Igreja católica ou outra – só por deferência mais ou menos tolerada. Por outro lado, a presença num ato público de uma procissão não poderá ser como se pretendesse ir ou estar, mas antes tendo dignidade para o ato e para a função daquilo que é representado…
Apresentamos, seguidamente, breves propostas para um diálogo Igreja/mundo:
- Diálogo sincero – cada parte não deverá usar de subterfúgios para vencer o outro, pois quem for vencido fica inferiorizado e a perder... podendo, com isso, ser impedida a prossecução do diálogo e da proximidade encetados.
- Diálogo construtivo – cada um dá o que tem, esperando receber do outro em abertura e em simplicidade. Com efeito, há ‘sementes do Reino’ em tanta gente e em muitas associações… de bem-fazer, de benemerência e com valores cristãos… mais ou menos difusos.
- Diálogo evangelizador – ir ter com os outros, estendendo-lhes a mão há-de ser para anunciar, no tempo oportuno e sem medos, a Pessoa de Jesus. Não interessa fazer proselitismo, mas antes abrir caminhos de verdade. Com pouco se pode fazer muito e com muito menos se pode estragar o pouco iniciado. Talvez aqui se possa incluir essa atitude de São Paulo: ‘fiz tudo para todos para conquistar alguns a todo o custo’.
- Diálogo cultural – da conjugação entre contexto social, referências à tradição e dimensão espiritual (particularmente imbuída dos valores cristãos) há-de poder surgir a possibilidade de cada um respeitar o outro, fazendo de cada momento de festa uma etapa de crescimento à luz da Palavra do Evangelho.
Será, no ‘átrio dos gentios’, que se poderá perceber um tanto melhor quem está disponível para aprender, respeitando e para crescer, aprendendo... uns com os outros.
(*) Texto apresentado no ‘plenário do clero’ da diocese de Setúbal, no dia 4 de Outubro, no Seminário de Almada e num tempo de formação do ‘Apostolado do mar’, no dia 5 de Outubro, no Seminário do Verbo Divino, em Fátima.
António Sílvio Couto
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