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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Acentuado narcisismo coletivo


Se pararmos um pouco para fazermos uma autoavaliação ou uma análise ao comportamento alheio, podemos, com alguma facilidade, ser denunciados por uma caraterística cada vez mais acentuada: uma boa dose de narcisismo, que deixou de o ser na vertente meramente pessoal para se tornar uma ‘doença’ generalizada. Com efeito, o melhor diagnóstico deste narcisismo é consubstanciado na popular ‘selfie’, onde cada um se revê, se admira e como que autocontempla…

Tentemos explicitar, então, alguns conceitos, expliquemos certos recursos e analisemos as consequências numa descoberta mais aprofundada das causas.

Narcisismo é o amor de um indivíduo por si próprio ou pela sua própria imagem, tendo uma referência ao mito de Narciso, o qual, segundo a mitologia grega, era um jovem de grande beleza, que nunca se tinha visto a um espelho nem conhecia o seu rosto, ao ver refletida a sua imagem num rio,  apaixonou-se por si mesmo, morreu afogado pela atração por si mesmo.
Em conceitos de psicanálise, narcisismo define um indivíduo que admira exageradamente a sua própria imagem e nutre uma paixão excessiva por si mesmo...
Segundo alguns autores – mesmo na área da antropologia católica – a tendência narcisista da nossa cultura, faz-nos entrar num processo de auto-sedução em que o desejo ocupa o lugar de dono e as relações inter-pessoais se desvanecem: vemo-nos num espelho, mas sem ter uma resposta, à semelhança de Narciso da mitologia...
Uma das referências mais atualizadas deste ambiente narcisista da nossa cultura é a moda ‘selfie’, a qual, numa análise mais psicológica, manifesta o desejo de se auto-fotografar sempre, onde e com quer que seja...desde que o ‘eu’ esteja presente e em destaque... os outros, mesmo que possam ser socialmente mais importantes, não passam do caixilho onde o ‘eu’ aparece e brilha...
Também o uso e abuso dos auscultadores com músicas em altos decibéis, sem esquecer essa outra tendência em exaltar o corpo à condição de verdadeiro objeto de culto...
Repare-se como o Narciso, que anda por aí, lida com dificuldade com as rugas e com os cabelos brancos, manifestando o medo de envelhecer e a obsessão com a saúde e tantos outros cuidados com a estética, a beleza e o uso da cosmética... podendo tornar-se quase ridículo o exagero nesta reciclagem pessoal, inter-pessoal, grupal, social e cultural.
A condição de narcisista não exclui totalmente o outro, mas deseja vê-lo constituído à sua medida e  seu gosto. As relações deixam de ser inter-pessoais para passarem a ser inter-individuais. Nota-se alguma aversão à solidão, mas esta não é combatida pela abertura aos outros, mas estes são, antes, colocados e explorados pela conveniência de cada momento... entrando-se, deste modo, numa independência fictícia, embora com garras de isolamento e medo.
De facto, o narcisismo causa tristeza... Reparemos nos rostos tristes e pesados de tantos/as com quem nos cruzamos.  A tendência para o fechamento de um número significativo daqueles/as com quem nos encontramos no dia-a-dia não é atenuado com as maquilhagens com que tentam disfarçar-se, antes se percebe que por detrás de muitos rostos há apreensão, tédio e confusão. O excesso de tempo que passamos ao ‘nosso’ espelho faz com que não vejamos os outros, mas continuemos centrados em nós mesmos e nos nossos interesses nem sempre os mais altruístas e sinceros. Não será que nos falta tempo, oportunidade e condições para sorrirmos a nós mesmos e para com os outros?

Se atendermos ao ambiente geral em que vivemos, nos movemos e existimos, parece que o narcisismo tomou conta dos critérios, dos valores e dos comportamentos de uma boa parte dos nossos coevos. Com efeito, viemos mais centrados em nós mesmos – apelidar isso de egoísmo é pouco – contando sobretudo com os nossos interesses e suas afetações. Movemo-nos diante da ‘selfie’ com tal destreza que já não há fotógrafo que consiga apanhar-nos distraídos e em pose natural. Existimos como que narcotizados pelos anseios de nos fazermos notar, tanto por boas como por menos boas razões.

Educar para o altruísmo é, hoje, tarefa de grande e essencial necessidade, até para salvaguardarmos o que há de humano em nós e à nossa volta… 

 

António Sílvio Couto

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