É costume colocar-se em atitude
de prevenção ao ouvirmos: ‘qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência’... numa espécie de desculpabilização entre o que se pretende que é
e a realidade que pode acontecer. Por isso, a titulagem do que pretendemos
escrever: qualquer coincidência é pura realidade... numa denúncia de que há
fatos que, paradoxalmente, desmentem a realidade e que, por seu turno, há
vivências reais que ultrapassam a realidade, mesmo a mais inventiva,
democrática e até utópica.
Numa análise de coincidências e
de pretensas realidades – algumas parecem mais fenómenos do que fatos –
poderemos interrogar-nos sobre situações ‘normais’ e de normalidades mais ou
menos questionáveis.
- Que dizer das (mais) recentes afirmações
do Presidente da Caritas nacional, quando refere que, se o ‘estado social’ –
escrevemo-lo com letras em minúsculo pois o respeito encolhe perante as
atrocidades vividas e/ou preanunciadas! – for negligenciado, passaremos a ter
mais de quarenta por cento – diz mesmo que será 43 em vez dos atuais 17,9! – de pobres, em
Portugal? Isso será realidade coincidente, ou, pelo contrário, manifesta uma
coincidência da realidade? A quem interessa difundir tais números: a quem
exerce o poder ou à oposição? Será que temos oposição sem poder ou, pelo
contrário, poder sem oposição? Até onde irá a exploração dos ‘pobrezinhos’ por
benfeitores engravatados – bem comidos e melhor falantes! – que se encavalitam
na miséria, quais tortulhos crescendo do esterco? Até onde irá a ousadia de
fazerem dos pobres uma espécie de etiqueta de lapela mais do que em sujarem-se
– aspirando os odores mal-cheirosos dos que não se lavam por deficiência
económica! – nas vielas e nos hálitos da falta de dignificação?
Qualquer coincidência é pura
realidade à nossa porta, na nossa terra e neste país de (pretensos) ricos e
maus pagadores!
- Que dizer dos discursos ‘inflamados’
de políticos e autarcas, deputados e vereadores – vestidos com roupas de marca
e com perfumes de ocasião solene! – em defesa dos mais pobres, mas que só
atendem, preferencialmente, os seus apaniguados? Para quem vão os cabazes de
Natal? Um maltrapilho poderá ainda entrar no role dos atendidos? Quem for de
cor política diversa dos atendedores terá lugar na listagem a ser beneficiada? Será
que a fome tem rótulo e preenche os requisitos dos mandantes?
Qualquer coincidência é pura
realidade a começar à nossa porta, na nossa rua e neste país de (pretensos)
ricos, maus pagadores e difusores de novos e incontáveis pobres!
- Será que os discursantes em
comícios e em congressos – mesmo de partidos (ditos ou auto-apelidados)
defensores da classe operária, dos trabalhadores e dos mais pobres – sabem o
preço das coisas nos mercados e nas mercearias? Será que sabem quanto vale o
café ou o pequeno-almoço tomado fora de casa em comparação com um simples litro
de leite? Será que lhes têm oferecido oportunidades de conhecimento dos custos
ou preferem fazer demagogia com os gastos?
Qualquer coincidência é pura
realidade dentro dos nossos espaços de convívio, na nossa terra e neste país de
(pretensos) ricos, maus pagadores, difusores de mais pobres e manipuladores de
consciências fragilizadas!
- Até onde irá a camuflagem em
certos setores da Igreja católica para que não se afirmem e que se assumam como
uma das forças mais representativas do combate à pobreza em Portugal? Quem tem
medo de dizer a verdade: será que é por nós temermos que nos fechem a torneira
dos subsídios e que venham a tornar as nossas instituições inviáveis? De pouco
importa o que nos dão se nós não tivermos meios de sobrevivência: teremos de
continuar mudos e cúmplices? Teremos de calar certas injustiças e (pretensas)
manipulações?
A realidade é mais profunda do
que uma simples coincidência, por isso, precisamos de criar uma corrente de
fraternidade onde, quem faz algo pelos outros, não tenha de mendigar o que se
lhe deve por justiça nem que nos calem pelo medo só porque o ‘estado social’
está em colapso e nós podemos cair a qualquer momento. A realidade faz da
coincidência uma aspiração de mais alto, de mais além e de mais cristão... para
além do Natal!
António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)
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